1. Quantas pessoas já foram vitimadas por precedentes que não são precedentes? 6j5s15
Outro dia discuti com alunos a questão da lenda jurídica chamada precedentes, na parte em que se fala da exigência de similitude fática. O ponto alto da discussão foi quando abordamos a origem da famosa Súmula 182, um autêntico exterminador de agravos interpostos contra inissão de recursos especiais. O dramático é que é uma súmula surgida do cível, originária de uma questão atinente à cédula rural. E anualmente ajuda a colocar na cadeia milhares de pessoas. E, de lambuja, serve para retirar ou conceder bens materiais a milhares de pessoas. Quantos já empobreceram por causa dessa súmula?
Como falar em similitude fática? E o que dizer da Súmula 7? Invocada como precedente, é tudo, menos a condensação daquilo que a formou: um conjunto de precedentes. Parece estranha essa formulação, mas não esqueçamos que uma súmula é o resultado de um conjunto de precedentes. E o que dizer do Tema 339, do STF? Quantas vítimas habitam os presídios por causa desse tema? Quantos bens mudaram de mãos por causa da discussão da fundamentação que, segundo o tema, não exige o exame de todos as teses esgrimidas pela parte? A agravante: tema não é precedente.
É sobre isso que quero tratar. Na linha do que venho escrevendo de há muito.
2. Por que insisti em incluir no C-2015 o artigo 926 (exigência de coerência, integridade e estabilidade) 175a5b
É desejável que o sistema jurídico seja previsível. Por isso fiz força para incluir o artigo 926 no C. Era e é necessário um sistema com previsibilidade e segurança. Mas, não qualquer segurança.
Explico: aprovado o C, começou a batalha dos precedentalistas brasileiros para emplacar (e emplacaram, mesmo) a tese de que o direito, as leis, os textos, são indeterminados. Trata-se do realismo jurídico [1], pelo qual o direito posto pelo legislador é desprovido de sentido, cabendo às Cortes de Vértice (leia-se, Tribunais Superiores) estabelecer o sentido final. O ponto é esse. É o que se chama, cientificamente, de ceticismo. Sem tirar, nem por.
3. Os juízes devem seguir precedentes? Claro que sim. Mas seguir precedentes e não ‘póscendentes’ (regras gerais e abstratas) 1t4w39
Que os juízes devem seguir precedentes, concordamos (de novo registro “minha emenda ao C” que introduziu o artigo 926). Os próprios tribunais devem seguir (seus) precedentes. O problema é os Tribunais de Vértice estabelecerem, estipulativamente, direito como regras gerais e abstratas. Essa tarefa é do legislador. Isso mostra que os precedentes à brasileira desbordam do sistema constitucional.

Claro que isso é um projeto de poder e que agrada os tribunais. Se há o poder de estabelecer o direito por autorictas (ato de vontade), o Poder Judiciário se transforma em legislador. Está aí a razão pela qual “se perdem no meio do caminho” os casos concretos que deveriam ensejar o precedente.
A cada julgamento, faz-se (emite-se) uma nova “lei”. Portanto, no Brasil o “precedente” é algo que já nasce precedente, para vincular — quando, ao contrário, o precedente original do common law (somente) se torna um precedente a partir da atividade reconstrutivo-interpretativa da ratio por parte dos tribunais subsequentes [2].
Aqui no Brasil, no afã de construir regras gerais, chegou-se a criar a figura do “precedente persuasivo”. Ora, esse conceito sofre de uma contradição performativa: se é persuasivo, não é vinculante. Para que serviria um precedente persuasivo? Permito-me dizer: o persuasivo não pode ser chamado de precedente. Pode ser qualquer coisa, menos precedente.
4. Um problema de institucionalidade: os tribunais têm a função de estocar normas para o futuro? Isso não seria tarefa do Legislativo? 493560
Erro fundamental daquilo que venho denominando de “precedentes à brasileira” se materializa no desejo exa(ge)rado dos tribunais superiores em produzir um estoque de normas jurídicas para o futuro sob a forma de precedentes (teses, temas etc.). Trata-se de uma contradição hermenêutica: não há respostas antes que as perguntas sejam formuladas. Não é papel dos tribunais resolver, abstratamente, causas jurídicas de maneira prospectiva. Precedentes são decisões pretéritas de casos concretos, cujas rationes são identificadas como norma pelos demais tribunais e sempre aplicadas contingencialmente.
Vinculante, num país de civil law, é a lei à qual o precedente se refere. Uma tese geral e abstrata para o futuro não é um precedente. É uma lei. Uma regra geral. Isso seria até uma contradição semântica. Vale ressaltar que em uma democracia constitucional o Poder Judiciário cuida do ado; pensar no futuro é tarefa do legislador. Conforme muito bem analisa José Luis Marti, o realismo jurídico é uma ameaça ao liberalismo e à democracia, ao permitir uma convergência dos poderes nas mãos do Judiciário enquanto único intérprete legítimo do direito.
5. Como se lida com precedentes? O overruling como direito fundamental! ‘Se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto’, disse o ministro 21493x
Se falamos em precedentes, temos de entender que estes têm uma dinâmica de funcionamento. Observe-se que o ministro Luis Salomão, diz, por exemplo, que “se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto”. E em uma publicação sob os auspícios da Enfam, STJ e CNJ, há um artigo que alça o distinguishing ao patamar de direito fundamental [3].
Portanto, tudo indica que, no imaginário jurídico, o que “pegou” foi a relação precedentes brasileiros e common law. No dia 11.06.2024, noticiou-se nos sites jurídicos: “Precedentes no STF e nas duas Turmas do STJ: aplicado tráfico privilegiado, autos devem ser remetidos ao MP…”. Veja-se como usam o termo “precedentes”. Na verdade, está correto. Qualquer decisão de Tribunal pode ser precedente (ler aqui detalhes sobre isso). D’onde fica sem sentido a distinção “persuasivos-qualificados”. Bom sabemos como isso funciona. É precedente, mas pode não ser. Não esqueçamos que o STJ diz que precedentes persuasivos não dão azo ao uso do 489 do C (Pablo Malheiros escreve sobre isso).
Ademais, mesmo no civil law, quando se aplica um precedente, sempre se tem como base essa funcionalidade. Caso contrário, o precedente não é um precedente, é apenas uma tese ou um conceito geral e abstrato que funciona no modo como funcionavam os assentos portugueses – declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional de lá. E isso tem de ser estudado. E levado em conta. Façamos uma epistemologia sobre isso.
Dizendo de outro modo: como fazer distinguishing de tese geral e abstrata construída pro futuro? Esse é o ponto. Como professor, tenho a obrigação republicana de alertar (mais uma vez) as autoridades sobre esses equívocos de ordem epistemológica. Tenho reclamado – e ouvido muitas queixas – da falta de diálogo e de debate sobre o tema. De que maneira se identifica uma ratio decidendi? O que vincula em uma decisão? No meu livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica chamo a atenção sobre isso de há muito.
Mais: até no common law já se trabalha – há bons textos sobre isso – com a ideia de que, pela supremacia do Parlamento, entre um precedente errado e a interpretação correta da lei, fica-se com a lei. No país do stare decisis. De common law. Aqui, no civil law, em vez de entendermos que o que “vincula” não é “o precedente” enquanto tese geral, mas, sim, a lei a que o precedente se refere, preferimos apostar na antiga autorictas.
O Brasil é, mesmo, um país sem precedentes.
Por fim, deixo uma advertência aos que estudam o processo civil e penal (que vale para os demais ramos): durante muito tempo, não fizemos doutrina no Brasil (e isso não é minha opinião, é história), perpetuando culturalmente o projeto de colonização portuguesa para nós. Como adverte José Reinaldo Lima Lopes, nossos primeiros manuais surgiram com os acanhados títulos de “primeiras linhas”, “esboços” e “anotações sobre o direito português”. Levamos tempo para tomarmos coragem e surgir entre nós um Pontes de Miranda ou um Ovídio Batista. Eles ficariam desolados ao perceber o estado de recolonização gnosiológica ao qual muitos de nossos processualistas se permitiram, agora em relação àquilo que chamam de Cortes de Vértice. Afinal, se o direito é o que os tribunais dizem que é, para que serve a doutrina? Quando respondermos a isso, estaremos iniciando a discussão.
Minha tese: não renunciemos a nosso direito de pensar.
[1] Aqui não me refiro ao realismo escandinavo, de caráter mais epistemológico. Importa aqui são as diversas matizes do realismo norte-americano (e do genovês), que têm em comum o ceticismo em relação às leis e às próprias decisões dos tribunais.
[2] Nunca é demais ver como funcionam os precedentes no civil law. Nem de longe há similaridade com o Brasil. Por exemplo, Portugal e Alemanha (ver aqui)
[3] Cf. Acácia Regina Soares de Sá. A Racionalização na Aplicação da Técnica de Distinção de Precedentes pelo STJ como Direito Fundamental à Segurança Jurídica: uma análise empírica. In: SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO Demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência. Publicação da ENFAM.