Senso Incomum

As armadilhas dos julgamentos sob 'perspectiva' propostas pelo CNJ

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5 de dezembro de 2024, 8h00

1. Em vigor um novo protocolo determinando julgamento sob perspectiva de raça

Foi noticiado que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou mais uma de suas resoluções de julgamento sob perspectiva [1].

O tema agora é a questão racial, instituída por resolução, elaborada pelo Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer). Trata-se de um documento de mais de 160 páginas, que apresenta um guia completo de como se devem comportar os juízes diante de casos que envolvam questões de raça (tal qual o protocolo sobre perspectiva de gênero). O documento traz conceitos como racismo estrutural, institucional, inconsciente, recreativo, enfim, todas as formas presentes na literatura e no imaginário social. Apresenta também as estratégias para incorporação das diretrizes expostas no protocolo.

O objetivo desta coluna é, reconhecendo a importância de proteção de grupos vulneráveis, contribuir para reflexões críticas sobre o melhor modo de fazê-la, tanto no plano epistêmico quanto no de resultados práticos – inclusive, evitando dar munição para perigosos backlashes.

É o papel da doutrina.

2. A medida

Essa é uma medida que segue o já aprovado Protocolo para Julgamento sob Perspectiva de Gênero. O objetivo dessas ações normativas é corrigir os vieses decisórios do Poder Judiciário que estariam, naturalmente, “contaminados” por assimetrias intrínsecas — ou “estruturais” — promovidas (1) pelo racismo e branquitude, quanto à perspectiva racial, e (2) pela visão machista e patriarcal, no caso da perspectiva de gênero.

Já de início poderíamos falar sobre “de como os pobres são tratados nos julgamentos”, para além dos vieses e perspectivas. E, como repetirei ao final, cabe já a pergunta: e se os acusados forem pobres e/ou membros das mesmas minorias protegidas pelos protocolos?

Mas, sigamos.

A busca, na visão desses atos normativos, é a redução das chamadas “desigualdades estruturais”, trabalhadas por autoras e autores comumente ligados aos critical legal studies e às teorias feministas do direito, entre elas(es) Catharine A. Mackinnon, Katherine Bartlett, Fabiana Cristina Severi e Roger Raupp Rios, este último meu brilhante colega no Programa de Pós-Graduação da Unisinos. Aqui também registro aquilo que há décadas as teorias críticas tratavam (pensemos no jargão que simboliza a discussão – la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos – afinal, somos antigos nessas lutas).

Muitas autoras(es) filiadas(os) a tais teorias embasam as premissas epistemológicas desses protocolos, que agora ganha uma versão específica para tratar do caso racial.

A iniciativa se insere em uma necessidade mais geral de se pensar a questão das minorias, da justiça social e da igualdade substantiva. Evidentemente que esse tema teria implicações jurídicas, pois uma releitura do conceito de igualdade afeta o direito.

Falando, especificamente, dos documentos, o próprio teor dos comunicados (re)afirma a necessidade de se repensar o conceito de igualdade. Seria agora uma “outra igualdade”.

Spacca

Para o CNJ, o conceito de neutralidade judicial, embora importante em um contexto liberal de necessária construção de autonomia judicial, deve ser revisado, justamente porque teorias contemporâneas, chamadas de interseccionais, trouxeram à tona novas realidades de opressões sofridas por grupos minoritários — opressões essas que podem ser reforçadas pelo Poder Judiciário caso este opte, ao aplicar o Direito, por utilizar um método jurisdicional que privilegie tal conceito “antiquado” de igualdade formal, oriundo do paradigma liberal-individualista. A igualdade seria uma desigualdade.

De pronto, reflito sobre se, com base no texto constitucional vigente, já não teríamos como pressuposto político e jurídico (e, portanto, jurisdicional), a superação da mera igualdade formal burguesa. Afinal, os diversos dispositivos do artigo 5º, entre outros, sobre o tema já não serviriam como premissa hermenêutica vinculante?

A questão inicial, portanto, é: se a Constituição já fez todas as absorções da moral e da política, traduzidas na gramática dos direitos fundamentais e sociais, por qual razão será necessário trazer novas perspectivas morais e políticas sobre aquilo que prescreve o texto constitucional? É possível reescrever a Constituição? É o Judiciário que deve (pode) corrigir o que diz a Constituição, por meio de julgamento a partir de perspectivas de gênero e raciais?

Desde a primeira edição de Hermenêutica e(m) Crise, que fez recentemente 25 anos, alerto para os perigos de decisões judiciais que se dão em um plano abstrato, eivadas de uma doutrina criterialista (no livro Ensino Jurídico em Crise desenvolvo esse conceito amiúde). Alerto para uma crise de paradigma de dupla face, onde de um lado há tal doutrina, e de outro o problema do paradigma liberal-individualista, que ainda assola o Judiciário, juntamente com o patrimonialismo inerente ao Estado brasileiro e suas relações sociais.

Faço todo esse “disclaimer” justamente por querer me posicionar como alguém que se alia, por uma questão de princípio, a tais movimentos que buscam melhorias — inclusive jurisdicionais — a cidadãos que se classificam como minorias. Todos os meus livros e textos dão esse testemunho.

E o tenho feito a partir de um referencial que discute a questão do método na interpretação e os riscos de ativismos judiciais (riscos de vanguardas iluministas) que (mesmo que movidos pelas melhores intenções) podem levar a problemas bem conhecidos, preocupações que me levam a calibrar meus posicionamentos em respostas que deem conta de todos os princípios em jogo.

3. Boas intenções e riscos desconsiderados?

É nesta linha que retomo o debate sobre julgamentos em perspectiva, buscando integrar suas excelentes intenções a riscos inconsiderados. Faço isto como um aliado, com a esperança de que a fogueira deste debate produza mais luz do que calor. De todo modo: seria tarefa do judiciário? É o judiciário que deve “conduzir a história”?

Quando falamos em julgamento por (ou sob) perspectiva, os protocolos em análise mencionam o propósito de desconstruir vieses que promovem ou reforçam exclusões ou preconceitos raciais ou de gênero. Com efeito, há uma tradição (social e institucional) que sustenta um pré-juízo inautêntico que favorece pessoas brancas em detrimento de pretas; de homens em detrimento de mulheres e assim por adelante.

A pergunta é: como romper com essa tradição? Com esse ensino jurídico que está aí? Com a doutrina no estado atual, tomada por uma “cultura” prêt-à-portêr instagramável? Devemos dar um salto direto por cima do ensino e da doutrina (e do realismo jurídico, pelo qual o direito é o que os tribunais dizem que é) por meio de uma resolução-recomendação-protocolo do CNJ? Eis a questão.

Explico. Pela intenção de desconstrução dos vieses, parece que os protocolos aprovados buscam despir os magistrados de qualquer viés negativo para com minorias, como se o processo os levasse a um “grau zero” de sentido, para depois implementar um “grau máximo” de sentido favorável às minorias políticas.

Os vieses cognitivos nos processos decisórios estão bem mapeados pela neurociência atual, e corroboram com evidências empíricas as denúncias que já se faziam sobre como a discriminação influencia indevidamente o reconhecimento de direitos. O que ainda não está claro é como garantir a eliminação destes vieses.

Aqui retorna o debate hermenêutico sobre a questão do método nas Humanidades: até onde é possível prescrever a interpretação? Partindo da hermenêutica filosófica, haveria uma atitude ideal de se suspender os pré-juízos e se abrir para o diálogo com o outro, buscando uma fusão de horizontes que corrigiria os pré-juízos inautênticos. Contudo, Gadamer sempre foi um cético sobre a utilidade que uma parafernália metodológica teria para atingir tal resultado. Isto dependeria de um solo ético a ser cultivado. Como o filósofo já advertia, não há hermenêutica possível contra um tirano, que fixa como quiser os sentidos das coisas.

A noção de vieses cognitivos, economia comportamental e quejandos têm se tornado um dogma entre os juristas que, contemporaneamente, pretendem conferir ares de cientificidade a suas teorias. Como alerto em artigo recentemente publicado [2], essa perspectiva é expressamente associada ao paradigma naturalista (neurocentrismo) dirigido ao Direito segundo o qual todos os grandes problemas normativos e conceituais da filosofia do direito devem ser desconsiderados no sentido de focarmos empiricamente no processo cognitivo dos juízes e, assim, antecipar as suas decisões. Caímos em um realismo jurídico up to date. Não por acaso, o CNJ incluiu o tema como obrigatório nos concursos para magistrados. Na oportunidade, travei debate aqui na ConJur [3] com defensor da proposta exatamente nesses termos. O tema dos vieses e a sua relevância jurídica, antes das graves questões sobre minorias, portanto, nos leva a problemas teóricos densos sobre a natureza da racionalidade, interpretação e compreensão humanas.

Como sugerido acima, a partir de uma perspectiva hermenêutica, ainda que possamos abordar vieses cognitivos, alguns problemas conceituais da prática e da teoria do direito transcendem o nível empírico e dizem respeito à dimensão simbólica em que se situa a compreensão. Afinal, o que é isto – a igualdade?

Podemos abordar este conceito (igualdade) como se fosse algo standard, sem retomar as diversas teorias a respeito que se desenvolvem desde a Grécia antiga? E a quem cabe estabelecer a concepção “oficial” deste conceito? Ao CNJ? Há uma justificação jurídico-filosófica para a eleição desta e não daquela teoria, deste e não daquele autor que embasam o protocolo? Não falta epistemologia nessa discussão? De todo modo, isso não seria uma tarefa da doutrina, sedimentada organicamente em um ambiente jurídico-educacional crítico e emancipador?

É com estes cuidados que sempre discuti a interpretação do direito, buscando sugerir critérios adequados para o controle intersubjetivo da decisão, de teor muito mais substantivo do que procedimental, ciente de que devo fazê-lo de modo que não recaia nos ambiciosos cânones da hermenêutica jurídica clássica. No debate atual das neurociências, tem-se testado empiricamente a efetividade de heurísticas e desenviesamentos, mas não se chegou à elaboração de um “protocolo” conclusivo neste sentido – talvez haja aspiração de importar a cientificidade médica dos tratamentos com o termo. Não parece que o direito absorva – ou possa absorver – essa cientificidade.

Dito isto, é difícil imaginar que um juiz racista ou machista vá mudar seu modo de decidir por conta de um protocolo, se estes pré-juízos inautênticos não tiverem sido combatidos em seus processos formativos. Daí a importância de um ensino jurídico antirracista e machista, com o que estou de pleno acordo.

Há tempos denuncio – talvez eu seja quem mais faz isso – que o ensino jurídico não pode ser feito da maneira bacharelesca e desconectada dos problemas sociais, como as várias desigualdades do país. O livro Ensino Jurídico e(m) Crise, que publiquei pela Contracorrente recentemente, aborda tais questões de forma detalhada.

Alguém pode objetar que, ainda que insuficientes por si mesmos, tais protocolos auxiliariam a explicitar o que seria um julgamento racista ou machista. O difícil (talvez não impossível) é calibrar estas diretrizes. Se muito modestas, tornam-se triviais. Se muito ousadas, podem gerar contestações sobre a imparcialidade do julgamento. Ademais, o potencial para que tal protocolo gere atritos de competência com o Legislativo, e refluxos sociais, torna sua elaboração a nível istrativo pelo CNJ um campo minado. Afinal, talvez os riscos que lhes são inerentes possam superar os incertos benefícios. Não tenho a pretensão de julgar isto categoricamente, trata-se apenas de questões que levanto para a comunidade jurídica, sobretudo para os juristas progressistas (entre os quais me incluo). A hermenêutica não quer ter a última palavra.

O que se tem, na realidade, é que o CNJ – talvez sem se dar conta – quer implementar, com esses protocolos, um novo paradigma de interpretação. Um novo modo de compreender a realidade, colocando em dúvida dois mil e quinhentos anos de filosofia. E isso não é pouca coisa.

4. Uma inovação na filosofia? Haverá um racha na base do garantismo?

Os protocolos representam, indubitavelmente, a tentativa de estabelecer uma inovação na filosofia da linguagem. E na hermenêutica. Na própria filosofia. Primeiro, com um viés de gênero, que “facilita” ou “privilegia” condenações em ações penais que envolvam mulheres ou pessoas LGBTQIA+. Mutatis, mutandis, é disso que se trata.

Agora, propõe-se um protocolo de julgamento sobre julgamento sob perspectiva racial, com os mesmos objetivos. Isto é, não são os fatos que dão o sentido, mas quem dará o sentido é o intérprete a partir de um viés prévio (espécie de standard pré-constituído de gênero, de raça ou interseccional). Volta-se a uma relação adequatio rei et intelectum, isto é, em termos de paradigmas filosóficos é uma volta à relação sujeito objeto, em que o sujeito assujeita o objeto (o sujeito dá o sentido à coisa – prova – a partir de um juízo prévio interiorizado a partir da perspectiva estabelecida pelo CNJ). Enfim, isso apenas mostra o quanto no direito nos preocupamos (ou não) com os paradigmas da filosofia.

Essa é uma questão antiga. Vingando o julgamento sob perspectiva, devemos observar que, como consequência, teremos que o réu responderá pelo-fato-a-partir-de-um-olhar-específico. Não parece problemático? Fala-se muito — em especial, os garantistas, que insistimos nesse ponto — na necessidade de um juízo de garantias, que respeite o devido processo e que não esteja “cognitivamente contaminado” pelas diligências da instrução probatória. Isto foi muito debatido durante o julgamento do juiz das garantias.

Daí a pergunta: o que diremos nós, os garantistas, sobre “um juízo que se apresenta ao caso já com a chancela pré-determinada de um determinado viés para julgar uma demanda”? Com isso, há potencial para racharmos a base dos garantistas.

A partir do julgamento sob viés (perspectiva) de gênero e raça, a compreensão a a ser dada por um elemento subjetivo prévio. É disso que se trata, gostemos ou não. Temos de dar nome às coisas.

Já escrevi muito sobre isso e confesso não ver como tais protocolos possam evitar juízos discricionários. O documento sobre perspectiva de gênero acerta quando fala que é “importante que princípios sejam utilizados de maneira rigorosa e que tenham seu conteúdo e contornos bem estabelecidos pelas julgadoras e pelos julgadores, evitando-se que assumam caráter meramente retórico”.

Mas indago: um viés ou perspectiva interpretativa não sustenta, per se, também um caráter retórico? Como cumprir os ditames constitucionais e processuais — que demandam coerência e integridade — com um viés predeterminado? Seria como transformar o direito em um oxímoro, como se fosse possível “não contentar-se de contentamento” – possível apenas na poesia.

Ainda: se se deve obedecer a princípios, por óbvios que os tais princípios não podem ser tidos como “valores”. Princípios são e devem ser vistos como normas. E normas não podem ter vieses.

5. Em termos de garantias e garantismo, podemos deixar de lado a circunstâncias de que a maioria dos acusados de crimes, que estão na mira dos julgamentos sob perspectiva, são pobres?

Há décadas os garantistas dizemos que o sistema jurídico é perverso, porque trata sempre melhor os autores de crimes que pertencem ao andar de cima da sociedade. O resultado disso é facilmente constatável, se pensarmos o percentual de pobres que estão presos (la ley es…).

O que quero dizer é que os julgamentos sob perspectiva, a pretexto de proteger as vítimas e castigar exemplarmente quem comete crime de gênero e de raça, pode incrementar também a condenação de pobres. Se deram conta disso?

Para entender melhor isso, pensemos nos juizados especiais: se são rápidos para “dar” direitos, são igualmente rápidos para “tirar” direitos… Pobres tirando direitos de pobres, rapidamente, via juizados. Claro: porque existem direitos do andar de cima julgados nos juizados “normais” e os direitos de segunda classe, esses julgados pelos juizados criminais e cíveis. Nota: não cabe REsp de julgamento de juizados. Basta ver o sofrimento dos consumidores lesados…

6. Por que o combate ao objetivismo sempre precisa evitar recair em subjetivismos? Ou: porque para combater injustiças precisamos apostar no protagonismo individual dos julgadores, por exemplo, sob perspectiva de gênero e raça?

Penso que a teoria do direito deve proporcionar mecanismos para perceber que racionalidades de gênero e raça estão sustentadas ainda no velho paradigma metafísico moderno (ontoteológico) de um juiz que se assenhora do sentido (com um viés determinado) favorecendo determinada parte. É disso que se trata. Pode dar certo e o juízo moral individual de uma determinada parte pode ser atendido, mas não é garantia de imparcialidade e de justiça substancial, como se promete.

Despiciendo dizer – bastando, para tanto, examinar o que escrevo sobre essas temáticas – que concordo totalmente com autores e autoras que trabalham as relações entre hermenêutica e questões de gênero ou raça sobre a necessidade de se criticar a falsa neutralidade dos positivismos, especialmente o de base exegética (textualista) que pretende uma mera reprodução objetiva do texto legal. Concordo que é fundamental a sensibilidade para o contexto em que estamos inseridos, para o histórico dos problemas sociais e para um diálogo que escute os subalternizados.

Contudo, apenas ressalvo (e muitos concordam comigo nisto) que o combate ao objetivismo sempre precisa evitar recair no subjetivismo. Não se pode trocar seis por meia dúzia (só que) às avessas. Paradigmaticamente, tratamos a interpretação como atribuição intersubjetiva de sentido, o que se traduz institucionalmente na própria democracia contemporânea.

Também não discordo (junto com Gadamer e Dworkin) que o jurista possa desenvolver seus meios próprios de evitar o erro, desde que se entenda que há uma estrutura profunda da compreensão comum na hermenêutica, o que inviabiliza “hermenêuticas regionais”. Aqui não há a pretensão de um universalismo colonialista, mas apenas o reconhecimento das bases comuns de entendimento. Compartilhamos minimamente algo. Sem isso, as divergências seriam impossíveis, tornando-se incomensurabilidades e relativismos que em nada ajuda a defesa de minorias.

Voltando ao ponto inicial da coluna, é urgente o combate às discriminações no direito brasileiro, e a parcialidade gerada pelo racismo é absolutamente condenável. Acrescento apenas que, para enfrentá-la sem suscitar problemas processuais-constitucionais, talvez os protocolos não sejam a melhor alternativa. Talvez o sejam, mas com muitas ressalvas. Sem isso, teorias bem-intencionadas podem se aproximar muito mais de um realismo político-jurídico, pragmatista e cético, algo que Dworkin questiona desde a publicação de O iImpério do Direito. E abrir o flanco para reações perigosas. E no Brasil há vasta doutrina sobre isso.

 

Post scriptum 1: uma retranca (des)necessária

É evidente que quando critico tal política do Judiciário não estou me referindo a políticas de ações afirmativas. Essas se dão no âmbito da política (policy) e são adequadas, aí para reduzir desigualdades. Isso faz parte do compromisso constitucional que assumimos como sociedade. Agora, transformar uma política istrativa do judiciário em policy é outra coisa. É ir para além da esfera do judiciário e invadir uma competência legislativa.

Já escrevi por demais sobre a diferença entre judicialização e ativismo. Falo que a judicialização é contingencial, natural de uma democracia, enquanto todo ativismo é prejudicial. Nesse caso, quando um órgão istrativo busca “corrigir” o agir decisório de um juízo com conteúdos que não estão na lei, isso me parece prejudicial. Lembro do recente artigo do pai do garantismo, Luigi Ferrajoli: inverteu-se a perspectiva da legalidade: veritas facit legem e auctoritas facit iudicium, ou seja, agora estamos na ideia de que é a autoridade do juiz que cria o direito. O que fragiliza a própria legalidade, a autorictas facit legis.

Post scriptum 2: Pré-juízos e prejuízos

Não há maior máquina de reprodução de preconceitos estruturais que o direito criminal. A dogmática e o ensino jurídico contribuem imensamente para isso ao se preocuparem mais com hipóteses absurdas – ‘Tício e Caio querem matar Mévio e, para tanto, cada um usa metade de um frasco de veneno’ e quejandos – do que efetivamente analisar casos reais em que a aplicação do Direto feita pelos tribunais não se sustenta dentro de uma realidade, vide o caso da Súmula Vinculante 11, que veda utilização de algemas e que, mesmo assim, todos os réus são algemados “para preservação de sua integridade física”, até mesmo um homem que era maneta… Porém, julgamentos “sob viés” ou “sob perspectiva” levará à criação de novos tipos de pré-conceitos, que se transformarão em meros preconceitos. Ou, na linguagem hermenêutica, pré-juízos se transformarão em prejuízo.

Ademais, nada impede que os protocolos sejam utilizados em todas as áreas do direito. Ou os protocolos só servem para o juízo criminal? Numa ação cível de indenização, por exemplo, caberá o julgamento sob perspectiva de gênero e/ou raça? Ou sob outra perspectiva ainda a ser criada pelo CNJ? E como ficam essas questões quando confrontadas com a Constituição?

São questões a serem pensadas.

Post Scriptum 3: É possível que um fato tenha um viés? Uma coisa é de acordo com um olhar? Um fato é de acordo com “el cristal con que se mira”, como no poema de Campoamor?

Escrevi sobre isso não faz muito. O curto espaço me faz remeter o leitor(a) ao link.

 


[1] https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-protocolo-para-reduzir-impactos-do-racismo-na-atuacao-da-justica/

[2] Ver, nesse sentido,  STRECK, L. L.; JUNG, L. Hermenêutica e Inteligência Artificial: Por uma Alternativa Paradigmática ao Imaginário Técnico-JurídicoDireito Público[S. l.], v. 21, n. 110, 2024. DOI: 10.11117/rdp.v21i110.7689. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/7689. o em: 3 dez. 2024.

[3] Ver a coluna Ainda o CNJ e concursos: direito se resumirá ao estudo de vieses? Disponível em: < /2021-out-07/senso-incomum-ainda-cnj-concursos-direito-resumira-estudo-vieses/>

 

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