Pierre Menard, autor do Quixote: é possível reproduzir o sentido de um texto?
9 de novembro de 2024, 8h00
No conto Pierre Menard, o autor do quixote, Jorge Luis Borges apresenta ao leitor um curioso personagem que, antes de morrer, dedicara-se a um assombroso e obstinado projeto: escrever no século 20 um novo Quixote, mas exatamente igual ao Dom Quixote de Miguel de Cervantes.
Não se tratava de uma transcrição, pois não se propunha a copiá-lo. Descartou também o método inicial de ser Miguel de Cervantes, o qual seria menos árduo do que continuar sendo Pierre Menard e chegar no Quixote pelas suas próprias experiências [1]. E foi, então, em Nîmes, 1939, que o autor do Quixote legou seu texto fragmentário, resgatado pelo narrador após a sua morte.
Fazendo um cotejo dos capítulos isolados das obras, o narrador destaca o capítulo XXXVIII da primeira parte do livro, “que trata do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas e as letras“. Isto é: A favor das armas e contra as letras em Cervantes (um velho militar), e igualmente elaborado, mas por diferentes motivos, em Pierre Menard (um homem contemporâneo de La trahison des clercs e de Bertrand Russel) [2].
Apesar de inacabada a obra, o texto escrito por Pierre Menard é avaliado pelo narrador como “quase infinitamente mais rico” do que o de Cervantes, embora os textos fossem verbalmente idênticos.
Dentre as diversas questões suscitadas pelo realismo fantástico de Borges (entre as quais estão a questão do duplo e a sátira à conjuntura europeia do final dos anos 1930), atentamo-nos à seguinte: é possível reproduzir o sentido de um texto?
A distância temporal entre Cervantes e Menard (e o seu intérprete-narrador)
No conto de Borges, o tempo é o principal elemento que marca a diferença entre os autores e os textos produzidos por cada um. Como visto, o capítulo que narra o discurso sobre as armas e as letras foi escrito por Pierre Menard de forma verbalmente idêntica ao texto de Cervantes. Porém, o texto de Menard, ao ser contextualmente interpretado pelo narrador, revelou uma diferença de sentido em relação àquele escrito pelo antecessor. Afinal, como afirma o próprio autor:
“Compor o Quixote em princípios do século XVII era uma empreitada razoável, necessária, quem sabe fatal; em princípios do século XX é quase impossível. Trezentos anos não transcorreram em vão, carregados como foram de complexíssimos fatos. Entre eles, para mencionar apenas um: o próprio Quixote” [3].
Em Verdade e Método, Hans-Georg Gadamer propõe o reconhecimento da distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender [4]. Nesse sentido, a distância temporal não é um “abismo devorador” que obstaculiza a compreensão, pois está preenchida pela continuidade da herança histórica e da tradição, que possibilita e mostra o transmitido àquele que procura compreender.
Nesse sentido, a tradição é o contexto histórico-linguístico no qual todo sujeito se vê imerso, sendo condição de possibilidade existencial de qualquer ser [5] e de todo compreender. Afinal, como ensina Gadamer, o ser que pode ser conhecido é linguagem.

Em outras palavras, a partir do giro-ontológico linguístico, modifica-se a ideia fundamental do pensamento filosófico de que temos o a um mundo que é externo a nós, percebendo-se que o mundo se apresenta a nós enquanto linguagem. E se a linguagem é compreendida como condição de o ao mundo, isso implica que a compreensão do mundo é interpretada linguisticamente.
Não se pode ignorar, então, que o sentido do texto se dá a partir do modo-de-ser-no-mundo no qual está inserido o intérprete, na medida em que o texto não é percebido primeiramente como “ser-objeto” desconectado do mundo circundante onde acontece essa manifestação; ao deparar-se com o texto, já há um ter-prévio, um ver-prévio e um pré-conceito, isto é, um conjunto de sentidos acerca da coisa.
Por isso, Gadamer afirma que o sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre, de modo que a compreensão não é um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo[6], dando-se a partir de uma tensão entre o texto e o presente:
“Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio” [7].
A tensão entre ado e presente, é marcada no conto exatamente pela distância temporal que separa os textos de Cervantes e de Menard, preenchida pela herança histórica e pela tradição, ao serem interpretados pelo narrador. Assim, o narrador, na posição de intérprete, enquanto ser no mundo e imerso na historicidade, explicita o compreendido acerca dos textos, com a consciência que “trezentos anos não decorreram em vão”.
Com Gadamer, portanto, compreende-se a impossibilidade de se reproduzir o sentido de um texto. Ao propor-se a reproduzir o texto de Cervantes, Menard acaba, por fim produzindo um novo sentido. E o narrador, ao interpretar no tempo presente (da narrativa) o Quixote de Menard também produz um novo sentido a partir do confronto de seus pré-juízos com o texto.
Todo compreender já se move em um espaço prévio de significado que é intersubjetivo, em que há um a priori compartilhado, e que independe do ato de compreensão individual, ao mesmo tempo em que o determina. Como afirma o Professor Lenio Streck, o compreender não é um agir individual do sujeito, mas um modo-de-ser que se dá na intersubjetividade[8]. Nenhuma interpretação se dá num vácuo de sentido. E o narrador, ao interpretar o Quixote escrito por Menard nos mostra exatamente isso.
Hermenêutica jurídica e a cultura de ‘precedentes’ no Brasil
Se o Direito, como a literatura, é linguagem, isso implica compreender que também no Direito existe uma cadeia de significados históricos condicionantes da interpretação jurídica, de modo que o intérprete não é livre para atribuir sentidos arbitrários aos enunciados normativos. A hermenêutica, nesse prisma, não é uma ferramenta metodológica disponível para o ato de interpretação, e sim um modo de ser daquele que compreende o direito[9], desde sempre imerso na temporalidade e cuja possibilidade se dá pela linguagem.
A partir do conto, pode-se compreender que o direito, como o quixote de Menard, não se encerra em sua própria textitude, na medida em que o paradigma hermenêutico revela a impossibilidade de se fazer coincidir ontologicamente texto e sentido do texto[10] (no caso do direito, a norma). Ao mesmo tempo, com Gadamer, entende-se que a “alteridade hermenêutica” exige daquele que interpreta a tarefa de deixar que o texto lhe diga algo.
Por isso, o professor Lenio Streck ensina que, não apenas na literatura, mas também no direito “textos são importantes; textos nos importam; não há norma sem texto; mas nem eles são plenipotenciários, carregando seu próprio sentido […] nem são desimportantes, a ponto de permitir que sejam ignorados pelas posturas pragmatistas-subjetivistas, em que o sujeito assujeita o objeto (ou, simplesmente, o inventa)”[11].
Além disso, também com a hermenêutica filosófica, há uma superação da divisão temporal entre compreensão e aplicação, o que significa que não se compreende um texto normativo, primeiro, para depois aplicá-lo a um caso prático concreto; a compreensão, na realidade, já traz em si o momento da aplicação. Assim, o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são atos separados, mas um processo unitário[12].
E o que tudo isso tem a ver com precedentes?
A cultura dos precedentes, no Brasil, está em grande medida arraigada naquilo que se denomina “teses precedentalistas”, cujo ponto central tem como pressuposto a indeterminabilidade do direito. Se o direito é indeterminado, alguém deve atribuir-lhe sentido. E assim, o conceito de interpretação fica como forma de criação e atribuição de sentido às “Cortes de Vértice”[13], através dos chamados “provimentos vinculantes”. Estes, porém, são feitos exatamente para servirem como “norma” em casos futuros.
No fim, temos uma inversão do próprio sentido do precedente, que poderia ser entendido, até mesmo em um sentido usual como “aquilo que precede; ocorrido previamente”, e que a a ser utilizado para nomear, ao fim e ao cabo, regras gerais e abstratas que se voltam para a resolução de casos futuros.
Para além desse sentido “usual”, tecnicamente, o precedente genuíno, no common law, não é criado como um precedente; apenas se um determinado caso, ao ser decidido, guardando a devida integridade com o Direito, após um tempo, poderá ser reconhecido como fonte do direito e, então, aplicado como precedente por outros órgãos judiciais no presente, a partir da atividade reconstrutiva-interpretativa do caso.
Veja: conforme analisado até aqui, texto e sentido do texto são coisas distintas. No direito isso significa que uma norma nunca é abstratamente. A norma só surge na solução do caso concreto; trata-se do produto da interpretação jurídica em que são envolvidos o programa normativo e o âmbito normativo, o que não ocorre fora do caso concreto.
No common law, o que vincula no precedente é, como bem explicou o professor Lenio Streck, uma holding que se extrai dele, isto é, um princípio, o qual dialoga com a história institucional do direito. E não se trata de uma aplicação mecânica, mas de uma reconstrução interpretativa do caso precedente, avaliando-se que o mesmo princípio se aplica ao caso concreto presente. A tensão entre ado e presente de que fala Gadamer ocorre aqui. Também nesse momento hermenêutico não se separa interpretação e aplicação – o fato de se “aplicar” a holding extraída do caso anterior não substitui a interpretação, mas ao contrário, ocorre no mesmo momento que ela.
Do mesmo modo, é necessário compreender, quanto aos chamados “precedentes vinculantes”, que enunciados de súmulas, temas repetitivos e teses emanados por Tribunais Superiores são nada mais do que textos, e por isso mesmo é impossível aplicá-los sem interpretação. E ao interpretar textos normativos a partir do caso concreto, produz-se sentido, isto é, norma.
Porém, devemos nos perguntar: uma tese abstrata produzida para o futuro ainda é um precedente? Ou já não é outra coisa? Tribunais têm legitimidade para criar textos gerais e abstratos para o futuro? Ou isso é, em uma democracia, tarefa do Legislativo? Bem, tudo isso nos levaria a uma outra discussão, a neste pequeno espaço, não pretendemos enfrentá-la.
Mas aproveitamos este espaço para convidar o leitor a participar do VII Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito, promovido pelo Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos, coordenado pelo professor doutor Lenio Luiz Streck, e que ocorrerá nos dias 28 e 29 de novembro. Este ano, o colóquio tem como tema a jurisprudencialização do direito e todas essas questões serão analisadas e discutidas com a atenção e o rigor técnico que exigem.
Apenas à guisa de conclusão, voltamos ao conto de Borges: o esforço de Pierre Menard de reproduzir o Quixote é, desde o início, classificado como um projeto impossível marcando o realismo fantástico de Borges. E mesmo aparentemente tendo atingido este objetivo em seu texto fragmentário (do ponto de vista meramente textual) o que Pierre Menard lega ao intérprete-narrador, ao final, é a produção de novos sentidos, a partir de sua interpretação.
No direito, o fetichismo dos precedentes vinculantes, ao exigir uma obediência mecânica a esses provimentos, desconsidera a impossibilidade de se reproduzir o sentido de um texto. E desconsidera também que não há aplicação sem interpretação. Ou que toda interpretação é uma produção de sentido e que a norma só é a partir do caso concreto.
E desconsiderando tudo isso, exige-se que juízes e “tribunais inferiores” se comportem como Pierre Menard, em seu absurdo projeto de reproduzir o sentido do Quixote (ou o direito já interpretado pelas Cortes de Vértice). Porém, a literatura nos mostra que o sucesso de Pierre Menard é ao mesmo tempo o seu fracasso: mesmo escrevendo um texto idêntico ao de Cervantes, o sentido produzido no presente da narrativa é algo novo.
Direito e literatura, ambos constituídos pela linguagem, compartilham entre si um caráter necessariamente interpretativo. E interpretar o direito é, desde sempre, uma questão filosófica.
[1] BORGES, Jorge Luis. Ficções (1944) – tradução Davi Arrigucci Jr. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 38-39
[2] BORGES, Jorge Luis. Ficções (1944) – tradução Davi Arrigucci Jr. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 42
[3] BORGES, Jorge Luis. Ficções (1944) – tradução Davi Arrigucci Jr. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.41
[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método; Tradução de Flávio Paulo Meurer – 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 445
[5] PEDRON, Flávio Quinad; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do Direito Contemporânea: uma análise das teorias jurídicas de Robert Alexy, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas, Klaus Günther e Robert Brandom. 2ª ed. Belo Horizonte: Conhecimento, 2020, p. 26.
[6] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método; Tradução de Flávio Paulo Meurer – 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 444.
[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método; Tradução de Flávio Paulo Meurer – 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 458.
[8] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 105.
[9] ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 318-320
[10] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 105 e 106.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 254
[12] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método; Tradução de Flávio Paulo Meurer – 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 463.
[13] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o sentido da vinculação no C/15, Salvador: Jus Podvim, 2018, p. 27.
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