Ambiente Jurídico

Regramentos sobre o comércio de bens culturais no Brasil

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30 de novembro de 2024, 8h00

Vem, de longa data, em nosso ordenamento jurídico, a preocupação estatal com o controle do comércio e a circulação de bens julgados de relevo para a tutela do patrimônio cultural brasileiro, que, como sabido, é submetido a um especial regime jurídico relativamente a seu gozo e disponibilidade e também a um particular regime de polícia de intervenção e de tutela pública, que condiciona a atividade e os negócios relativos a esses bens, sob várias modalidades, com o fim de  controlar-lhes a circulação jurídica.

Duas razões essenciais se destacam sobre o assunto: a) evitar a  dispersão e a evasão de bens representativos da cultura nacional e que deveriam ficar sob a tutela do poder público (não necessariamente como bens públicos, mas sujeitos a controle); b) obstar a alienação, notadamente com prejuízo para terceiros, de bens falsificados, adulterados ou desprovidos de valor cultural, como se verdadeiros fossem.

Com efeito, o artigo 81 do Decreto nº 24.735, de 14 de julho de 1934, já dispunha o seguinte:

“Art. 81. Os negociantes de antiguidade e obras de arte, de qualquer natureza, ficam obrigados a um registro especial no Museu Historico Nacional ou nas repartições estaduaes que o representem, não podendo vender objectos não devidamente authenticados.”

O dispositivo pioneiro, acima citado, teve vigência efêmera, sendo substituído pelas disposições insertas no Decreto-Lei nº 25/37, conhecido como “Lei do Tombamento”:

“Art. 26. Os negociantes de antiguidades, de obras de arte de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros são obrigados a um registro especial no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cumprindo-lhes outrossim apresentar semestralmente ao mesmo relações completas das coisas históricas e artísticas que possuírem.”

Lamentavelmente, por longas décadas o artigo em comento ficou sem qualquer aplicabilidade em nosso país, havendo necessidade de o Ministério Público de Minas Gerais, em litisconsórcio com o Ministério Público Federal, acionar o Poder Judiciário para compelir o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ao cumprimento do mandamento contido na referida norma.

A decisão final do Tribunal Regional Federal da 1ª Região foi assim ementada:

“CONSTITUCIONAL, ISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. PRESERVAÇÃO. CADASTRAMENTO NACIONAL. LEGALIDADE. DANO DE ÂMBITO NACIONAL. COMPETÊNCIA JURISDICIONAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (LEI Nº 8.078/90, ART. 93, II). I – Em se tratando de ação civil pública ajuizada contra autarquia federal, visando inibir danos ao patrimônio cultural brasileiro, com reflexos em todo o território nacional, como no caso, é competente a Justiça Federal localizada em Capital do Estado ou no Distrito Federal, para processar e julgar o feito, por força do que dispõe o art. 93, II, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), c/c o art. 21 da Lei n. 7.347/85. Precedentes do STJ. Preliminar de incompetência do juízo que se rejeita, na espécie. II – A implementação e funcionamento de cadastro nacional, para fins de registro de todos os negociantes de antiguidades, de obras de arte de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros, possui respaldo legal (Decreto-Lei 25/37, art. 26), competindo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, na condição de órgão responsável pela proteção, fiscalização, promoção, estudo e pesquisa do patrimônio cultural brasileiro (Decreto n. 5.040/2004), nos termos do art. 216 da Constituição Federal, promover, dentre outras ações, a identificação, o inventário, a documentação, o registro, a difusão, a vigilância, o tombamento, a conservação, a preservação, a devolução, o uso e a sua revitalização, exercendo, quando necessário, o poder de polícia istrativa, para essa finalidade. III – A determinação judicial, no sentido de impor-se ao referido órgão o fiel cumprimento de suas funções institucionais, não representa qualquer violação ao princípio da separação dos poderes, por se tratar, no caso, de medida garantidora da tutela constitucional de defesa do patrimônio cultural brasileiro (CF, art. 216 e incisos), a merecer a proteção do Estado, na dimensão constitucional de seu interesse difuso, que integra o meio ambiente cultural, sob a tutela expressa e visível da Carta Magna, nos comandos mandamentais de que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (CF, art. 215, caput) e ainda de que “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá o protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” (CF, art. 216, § 1º), pois “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas e IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais” (CF, art. 216, III e IV), sendo que “os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei” (CF, art. 216, § 4º). IV – Apelação e remessa oficial desprovidas.” (Apelação Cível nº 2006.38.00.039883-4/MG, 6ª Turma do TRF da 1ª Região, rel. Souza Prudente. j. 26.05.2008, unânime, e-DJF1 21.07.2008, p. 139).

Após a propositura da ação civil pública, o dispositivo foi regulamentado pelo Iphan por meio da Instrução Normativa nº 01, de 11 de junho de 2007.

Spacca

A referida instrução normativa instituiu o Cadastro Especial dos Negociantes de Antiguidades, de Obras de Arte de Qualquer Natureza, de Manuscritos e Livros Antigos ou Raros (Cnart), dispondo que os negociantes de antiguidades que exerçam, individualmente ou em sociedade empresarial, as atividades de compra, venda, importação ou exportação, de obras de arte de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros ficam obrigados a proceder à inscrição no cadastro especial do Iphan, compreendendo, inclusive,  as pessoas físicas ou jurídicas que exercem as suas atividades por venda direta, em consignação, leilão, agenciamento, comércio eletrônico ou por qualquer outra forma de contratação.

No que diz respeito ao comércio de armas de fogo antigas, cujo controle incumbe ao Exército Brasileiro, a Portaria nº 024/2000, do Departamento de Material Bélico, que aprova as normas que regulam as atividades dos colecionadores de armas, munição, armamento pesado e viaturas militares, dispõe o seguinte:

“Art. 14. Antiquários poderão registrar-se no Exército, com a finalidade específica de comerciarem armas de fogo obsoletas, fabricadas há mais de cem anos, e suas réplicas históricas de comprovada ineficácia para o tiro, que não estão sujeitas a registro.

Art. 15. Leiloeiros, filiados a uma associação de colecionadores de âmbito estadual ou nacional, poderão registrar-se no Exército, com a finalidade específica de promoverem leilões de acervos de coleção, para colecionadores registrados.”

Em razão disso, para a comercialização de armas de fogo obsoletas e suas réplicas há necessidade de registro junto ao Exército, sem prejuízo daquele que se exige junto ao Iphan.

Como notoriamente sabido, o mundo do comércio de antiguidades e obras de arte é muito movimentado por meio de leilões realizados, sobretudo, por grandes antiquários das principais capitais do país, com a venda pública de grande quantidade de itens que são arrematados por meio de lances – presenciais ou remotos – dos pretensos adquirentes.

A fim de prevenir a comercialização de bens objeto de ilícitos,  coisas fora do comércio e bens falsificados, o Decreto-Lei 25/37 dispôs que:

“Art. 27. Sempre que os agentes de leilões tiverem de vender objetos de natureza idêntica à dos mencionados no artigo anterior, deverão apresentar a respectiva relação ao órgão competente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob pena de incidirem na multa de cincoenta por cento sôbre o valor dos objetos vendidos.

Art. 28. Nenhum objéto de natureza idêntica à dos referidos no art. 26 desta lei poderá ser posto à venda pelos comerciantes ou agentes de leilões, sem que tenha sido préviamente autenticado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou por perito em que o mesmo se louvar, sob pena de multa de cincoenta por cento sôbre o valor atribuido ao objéto.

Parágrafo único. A. autenticação do mencionado objeto será feita mediante o pagamento de uma taxa de peritagem de cinco por cento sôbre o valor da coisa, se êste fôr inferior ou equivalente a um conto de réis, e de mais cinco mil réis por conto de réis ou fração, que exceder.”

O objetivo dos dispositivos acima, cujos antecedentes residem nos artigos 81 e 82 do Decreto nº 24.735, de 14 de julho de 1934 [1], é permitir que o poder público tenha condições de controlar o comércio de bens culturais, podendo prevenir  a alienação indevida e rastrear a circulação de bens falsificados ou sujeitos a especial interesse público, como os tombados (artigos 11 e 12 do DL 25/37) e os protegidos por lei (artigo 10 da Lei 8.159/91, v.g), cuja alienação é objeto de restrições legais.

Se o comerciante agente de leilão não apresentar previamente a relação ao Iphan, estará sujeito às sanções do artigo 48 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/41), que é a única previsão normativa nacional voltada especificamente para o combate ao comércio ilícito de bens culturais no Brasil, que movimenta anualmente milhões de reais.

Este é o teor do dispositivo:

“Art. 48. Exercer, sem observância das prescrições legais, comércio de antiguidades, de obras de arte, ou de manuscritos e livros antigos ou raros:
Pena – prisão simples de um a seis meses, ou multa, de um a dez contos de réis.”

Carta de Goiânia

A realidade nos demonstra que, não raras vezes, as condutas acima referidas, que tutelam o bem jurídico ambiental, são praticadas no benefício e interesse de pessoas jurídicas, a exemplo de luxuosas casas de leilão de obras de arte ou imponentes antiquários que expõem à venda peças de procedência ilícita, de sorte que os entes coletivos ou morais são os principais beneficiários de tais atos, podendo ser responsabilizados criminalmente consoante já tivemos a oportunidade de defender em outro artigo publicado nesta coluna [2].

Durante a realização do 1º Encontro Nacional do Ministério Público em Defesa do Patrimônio Cultural, realizado em Goiânia em outubro de 2003, o assunto foi objeto de debate, sendo inseridas na valiosa Carta de Goiânia as seguintes conclusões:

“49. 0 Ministério Público deve coibir o comércio clandestino de bens culturais e zelar para que se cumpra o art. 26 do Decreto Lei n° 25/37, que determina que negociantes de antiguidades, de obras de arte de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros são obrigados a um registro especial no lphan, cumprindo-lhes, outrossim, apresentar semestralmente a esse instituto relações completas de coisas históricas e artísticas que possuírem;”

50. Em se constatando o descumprimento de tal norma (art. 26 do Decreto Lei n° 25/37) o Ministério Público deverá promover a responsabilização do agente pela prática da contravenção penal de “exercício ilegal do comércio de coisas antigas e obras de arte” (art. 48 da L), sem prejuízo da adoção das medidas cíveis pertinentes;”

Se for exposta à venda ou vendida coisa que o leiloeiro ou comerciante deve saber ser produto de crime, configura-se o crime de receptação qualificada (artigo 180, § 1º. do B), com pena de reclusão três a oito anos e multa [3].

Quanto aos leiloeiros, é válido registrar que a profissão é regulamentada pelo Decreto nº 21.981/32. A Instrução Normativa do Departamento Nacional de Registro do Comércio da Secretaria de Comércio e Serviços DNRC/SCS/MDIC n.º10, de 19 de junho de 2009, dispõe sobre o processo de concessão, de fiscalização e o cancelamento da matrícula de leiloeiro.

O exercício da profissão sem o preenchimento de tais requisitos caracteriza a prática do ilícito penal previsto no art. 47 da Lei de Contravenções Penais:

“Art. 47. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.”

Enfim, o campo do comércio de bens culturais,  se não houver rígida fiscalização por parte dos órgãos públicos, se apresenta em terreno fértil para a proliferação de engodos, fraudes, compras e alienações de produtos de crimes, havendo necessidade da efetiva aplicação das normas que regulamentam a matéria.

 


[1] Art. 81. Os negociantes de antiguidade e obras de arte, de qualquer natureza, ficam obrigados a um registro especial no Museu Historico Nacional ou nas repartições estaduaes que o representem, não podendo vender objectos não devidamente authenticados. Art. 82. O Museu Historico Nacional authenticará os objectos artistico-historicos que lhe forem apresentados, mediante requerimento das partes interessadas e de accordo com a tabella de peritagem annexa.

[2] /2019-abr-27/ambiente-juridico-responsabilizacao-empresas-contravencao-penal-ambiental/

[3] PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÕES DA DEFESA E DA ACUSAÇÃO. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA , ART. 180, §§ 1º E 2º). VENDA DE IMAGEM SACRA, TOMBADA PELO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, FURTADA DE IGREJA CENTENÁRIA, DA CIDADE DE OLINDA. AUTORIA E MATERIALIDADE EVIDENCIADAS ATRAVÉS DE CONJUNTO PROBATÓRIO COERENTE, QUE PERMITE DIVISAR, COM PERFEIÇÃO, O PAPEL DESEMPENHADO POR CADA RÉU NA TRAMA ILÍCITA. 1. Receptação qualificada da imagem de madeira do Menino Jesus, que fazia parte integrante do altar da Igreja de Nossa Senhora das Neves, localizada no interior do Convento de São Francisco, em Olinda. 2. Peça sacra tombada pelo IPHAN, que, talvez, jamais volte a ser recuperada, porquanto findou revendida, por um antiquário, a um casal desconhecido, provavelmente, do sul do País. 3. Dolo inconteste, possibilitando um juízo inequívoco de que os réus, livre e conscientemente, perseguiram o resultado vedado pela norma penal. 4. Apelação do réu desprovida. Apelo do Ministério Público Federal desprovido, vencido, nesta parte, o Relator, que dava parcial provimento ao recurso ministerial, para majorar as penas cominadas aos réus. (Acórdão). (TRF 5ª R.; ACR 6208; Proc. 2001.83.00.007887-0; PE; Terceira Turma; Rel. Des. Fed. Vladimir Souza Carvalho; Julg. 30/04/2009; DJU 15/05/2009; p. 399).

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