Interpretação conforme o assédio judicial aos jornalistas e as ADIs 6.792 e 7.055
5 de abril de 2025, 9h22
A ABI (Associação Brasileira da Imprensa) manejou as ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) nº 6.792 e nº 7055 no STF (Supremo Tribunal Federal) postulando, com lastro artigos 1º, caput, V e parágrafo único, 5º, IV, IX, XIV, LIV e LV, 37, caput, 220, caput e §§ 1º e 2º, da Constituição de 1988 (CF/88), a interpretação conforme a Constituição dos artigos 186 e 927, caput e parágrafo único, do CC (Código Civil) e dos artigos 53, 79, 89, 81 e 835, caput e §1º, do C (Código de Processo Civil), “para assegurar a proteção à liberdade de expressão diante do emprego abusivo e intimidatório de ações judiciais contra jornalistas e órgãos de imprensa”. (trecho do acórdão do Supremo).

A associação de imprensa visava “o reconhecimento da figura do assédio judicial, caracterizado pela propositura de diversas ações judiciais contra o mesmo jornalista ou veículo de comunicação, em diferentes comarcas, baseadas no mesmo fato, com propósito silenciador ou intimidador”. Caso reconhecido o assédio judicial, os pedidos formulados discutem as seguintes questões: (i) reunião de todas as ações num único foro, o do domicílio do réu; (ii) responsabilidade civil do jornalista ou órgão de comunicação somente em caso de dolo ou culpa grave; (iii) penhora em dinheiro deixar de ser o mecanismo preferencial para satisfação de execução em face de jornalistas; (iv) dever de ressarcimento de danos materiais e morais ao réu vítima de assédio judicial; e (v) dever de ressarcimento de dano moral coletivo em razão da prática de assédio judicial a jornalistas” (trecho do acórdão).
O STF conheceu da ADI e julgou parcialmente procedente o pedido formulado para:
Julgar parcialmente procedente o pedido formulado para: (i) conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 53 do C, determinando-se que, havendo assédio judicial contra a liberdade de expressão, caracterizado pelo ajuizamento de ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o notório intuito de prejudicar o direito de defesa de jornalistas ou de órgãos de imprensa, as demandas devem ser reunidas para julgamento conjunto no foro de domicílio do réu; e (ii) dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil, para estabelecer que a responsabilidade civil do jornalista, no caso de divulgação de notícias que envolvam pessoa pública ou assunto de interesse social, dependem de o jornalista ter agido com dolo ou com culpa grave, afastando-se a possibilidade de responsabilização na hipótese de meros juízos de valor, opiniões ou críticas ou da divulgação de informações verdadeiras sobre assuntos de interesse público. Em seguida, por maioria, foi fixada a seguinte tese de julgamento:
“1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa; 2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio; 3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)”.
O espaço deste artigo não permite analisar ponto a ponto o acórdão e se restringirá a compreender o entendimento do STF sobre o que seja interpretação conforme a Constituição neste julgado.
No acórdão ficou consignado que: “A interpretação conforme a Constituição, na linha de precedentes do STF, permite que se atribua ou afaste um específico significado relativo a uma norma (decisões interpretativas) ou que se dê a ela interpretação aditiva ou substitutiva (decisões manipulativas)”.
O primeiro ponto a ser destacado é de que a afirmação acima trata norma como texto e isso nos remete a um período anterior ao positivismo normativista de Hans Kelsen, no qual texto e norma eram o mesmo significante. Do positivismo kelseniano para frente, norma e texto são significantes diversos, pois o texto é o enunciado normativo e a norma é a interpretação do texto no contexto de aplicação. [1]
Além disso, de há muito Lenio Streck explica o sentido de interpretação conforme a Constituição:
Existe uma técnica para salvar um texto jurídico, chamada “interpretação conforme a Constituição”, (verfassungskonforme Auslegung, em que Verfassung é Constituição, konforme é conforme e Auslegung é interpretação — peço desculpas pelo detalhamento; é que, no Brasil, significantes e significados se tornaram inimigos nos últimos tempos).
A chamada surgiu para os casos em que a nulificação de uma lei pode vir a causar maiores problemas do que se ficasse hígida no sistema. Esta é a ratio. Caso contrário, a lei seria fulminada. Sempre. Por isso, nesses casos, dá-se uma interpretação à lei, adaptando-a à Constituição. Salva-se-a. A ICC é, na verdade, uma adição de sentido. O texto permanece como está e se adiciona (Sinngebung — atribuição de sentido) um sentido que adeque a lei à Constituição. A fórmula é: este dispositivo só é constitucional se entendido no sentido de x.
A ICC é uma declaração positiva, ou seja, a ICC é uma decisão interpretativa de rejeição (da ação que visava inquina-la de inconstitucional!), que ocorre quando uma determinada lei é considerada como constitucional pelo tribunal (constitucional), desde que ela seja interpretada num sentido conforme a Constituição (interpretação adequadora).
Já a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtiklärung ohne Normtextreduzierung) é uma decisão interpretativa de acolhimento (ou de acolhimento parcial), ou inconstitucionalidade parcial qualitativa, ideal, ou vertical, ou, ainda, decisão redutiva qualitativa. Na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, ocorre a exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo, sem que se produza alteração expressa do texto legal. [2]
Indaga-se se em relação ao artigo 53 do C dever-se-ia ter utilizado a interpretação conforme a Constituição para se chegar ao resultado de reunião de processos no foro de domicílio do(a) jornalista(a) ou do órgão de imprensa, quando configurado o assédio judicial, se o artigo 53, III, “a”, IV, “a”, do C determina a competência em razão da sede do órgão de imprensa, caso a demanda reparatória seja manejada contra ele (C, artigo 53, III, “a”) ou do lugar do fato para a reparação de dano (C, artigo 53, IV, “a”). Até porque o assédio judicial, claramente, se enquadra como abuso do direito (Código Civil, artigo 187) caracterizador de violação da boa-fé processual (C, artigos 5º e 80, III).
A caracterização do abuso do direito processual no direito de peticionar em relação aos mesmos fatos jurídicos em juízos diversos contra as mesmas partes evidencia o uso do processo para obtenção de objetivo ilegal (C, artigo 80, III).
Também gera dúvida a utilização da interpretação conforme a Constituição decidia pelo STF nas ADIs 6.792 e 7.055 quanto aos artigos 186 e 927 do CC e restringir “a responsabilidade civil do jornalista, no caso de divulgação de notícias que envolvam pessoa pública ou assunto de interesse social, dependem de o jornalista ter agido com dolo ou com culpa grave, afastando-se a possibilidade de responsabilização na hipótese de meros juízos de valor, opiniões ou críticas ou da divulgação de informações verdadeiras sobre assuntos de interesse público”.
Isso porque se o(a) jornalista divulgou notícia que envolva pessoa privada de repercussão pública ou assunto de interesse social e a notícia não é verdadeira, não significa juízo de valor, não significa opinião ou não significa crítica, por que se itir a responsabilização do(a) jornalista somente por culpa grave ou dolo? Como ficam os princípios da responsabilidade por danos, a saber, a primazia da vítima, precaução, prevenção e da reparação integral [3] se o critério de imputação foi majorado pelo STF para dolo ou culpa grave, em caso de responsabilidade por abuso do direito (CC, artigo 187), cujo critério de imputação é objetivo e não se discute dolo e culpa grave, pois se baseia na ideia de risco da atividade?
O órgão de imprensa ou o(a) jornalista tem o direito de noticiar um fato da vida que envolva interesse social ou pessoa privada com repercussão pública, mas não pode exercer tal direito de forma que exceda “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Noutros termos, se a notícia veiculada envolva pessoa privada de repercussão pública ou assunto de interesse social e não é verdadeira, não significa juízo de valor, não significa opinião ou não significa crítica, o órgão de imprensa ou o(a) jornalista não pode veiculá-la, porque, se o fizer, abusou do direito de noticiar que possui.
Desse modo, o que o STF fez nas ADIs 6.792 e 7.055 foi alterar o sentido do critério de imputação para os casos de responsabilidade por danos dos órgãos de imprensa ou de jornalistas dificultando a reparação das vítimas, nos casos em que notícia veiculada não poderia ter sido exposta porque os fatos não eram verdadeiros não significavam juízo de valor, não significam opinião ou não significam crítica de quem noticiou, bem como envolviam pessoa privada de repercussão pública ou interesse social.
Em uma primeira análise, pode-se concluir e abrir o debate sobre o tema em dois pontos: (i) a interpretação conforme a Constituição realizada pelo STF quanto ao artigo 53 do C pode ser questionada se era necessária, uma vez que o próprio C já configuraria resposta para o mesmo resultado conferido pela tese do STF se interpretado de maneira conjunta os artigos 5º, 53, III, “a”, IV, “a”, e 80, III, do Código de Processo Civil.
(ii) a interpretação conforme a Constituição conferida pelo STF aos artigos 186 e 927 do CC parece que, a rigor, se configurou em interpretação desconforme à Constituição, pois itiu, com a mudança do critério de imputação de objetivo (risco) para subjetivo (dolo ou culpa grave) do abuso do direito (CC, artigos 187), o que dificulta a reparação da vítima, e itiu a violação direta e frontal do artigo 5º, V e X, da CF/88, que cuida da resposta proporcional ao agravo e da reparação por danos extramateriais e materiais aos direitos da personalidade.
O aprofundamento deste julgado e a confirmação (ou não) das duas conclusões acima ficarão para textos futuros, já que o objetivo do presente texto foi lançar luz para como o STF utilizou a interpretação conforme a Constituição nas ADIs 6.792 e 7.055.
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[1] Sobre o tema veja: STRECK, Lenio. Texto e Norma. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020, p. 419-426.
[2] STRECK, Lenio. Supremo e a presunção da inocência: interpretação conforme a quê? Revista Eletrônica CONJUR, Disponível em: /2016-out-07/streck-stf-presuncao-inocencia-interpretacao-conforme/ o em: 4abr2025.
[3] Veja: LÔBO, Paulo. Direito Civil – Obrigações. 13.ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2025, p. 286.
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