Diário de Classe

O Supremo, a inédita decisão per curiam e o dever de fundamentar

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12 de abril de 2025, 8h00

Na semana ada o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF nº 635/RJ – chamada de “ADPF das Favelas” – na qual foram estabelecidos critérios para atuação das forças policiais nas comunidades do Rio de Janeiro.

Na ADPF, o presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, resolveu por adotar um inédito método de julgamento no Supremo Tribunal Federal: o julgamento per curiam. Trata-se de uma decisão unificada proferida pelo tribunal em detrimento da soma dos votos dos ministros (decisão seriatim).

Embora no âmbito do Supremo Tribunal Federal se trate de algo novo, o mesmo não é incomum na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, de onde o Supremo parece ter se inspirado para que o julgamento fosse realizado desta forma.

Todavia, conquanto seja salutar que se busque o aprimoramento do processo decisório nos julgamentos do Supremo, deve ser observado que o caso concreto apresenta alguns problemas: ausência de previsão para julgamentos efetuados dessa forma; deliberações sobre ações constitucionais tomadas a portas fechadas e, sobretudo, ausência de fundamentação na decisão.

1. Um breve histórico da ADPF nº 635/RJ

Antes de adentrarmos ao julgamento é necessário fazer um breve relato das origens e de tramitação da referida ação até o seu julgamento de mérito pelo Supremo.

Trata-se de uma ADPF ajuizada pelo PSB, que denuncia graves violações a direitos fundamentais decorrentes da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Segundo o partido, a falta de medidas efetivas para reduzir a letalidade policial no estado viola direitos fundamentais. Essa realidade seria comprovada pelo alto índice de mortes em operações policiais, que atingem principalmente moradores de comunidades pobres e negras, incluindo crianças.

O PSB também cita a condenação do Brasil pela CIDH em 2017, devido à falha na investigação e punição de policiais envolvidos em execuções de civis. A ação pede que o Supremo determine que o estado do RJ elabore um plano de redução da letalidade policial, além de adotar medidas para proteger a população e os agentes, melhorar as investigações e garantir transparência nas ações policiais.

Recebida a ação, esta foi distribuída ao ministro Edson Fachin. No ano de 2020, em virtude da pandemia de Covid-19, foi determinada a restrição de operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais. Posteriormente, foram estabelecidas regras para proteger escolas e hospitais durante intervenções, proibição do uso de helicópteros como plataformas de disparo e medidas para assegurar a preservação de provas. Em 2022, o Tribunal reconheceu o cenário de violações sistemáticas de direitos em favelas e a omissão do poder público, ordenando a criação de um plano com metas para reduzir mortes em ações policiais, incluindo o uso de câmeras em viaturas e uniformes e a disponibilização de ambulâncias em operações de risco.

Em resposta, o governo do Rio de Janeiro apresentou uma proposta preliminar com diretrizes para evitar mortes decorrentes de intervenções policiais.

2. O início do julgamento

O julgamento de mérito teve início em fevereiro de 2025 com o voto do relator, que expôs longo arrazoado em que apontava uma série de medidas adotadas pelo estado do Rio de Janeiro que violariam direitos fundamentais e determinava ações que deveriam ser adotadas para garantir a preservação dos direitos.

Dentre os pontos inicialmente apresentados no voto do relator se destacava o reconhecimento de estado de coisas inconstitucional na atuação das forças de segurança pública no estado do RJ.

Nesse sentido, cumpre citar textualmente:

“O estado de coisas inconstitucional, na política de segurança pública, apresenta múltiplas dimensões e complexidades. Os esforços empreendidos pelo estado do Rio de Janeiro em sua mitigação devem ser reconhecidos, mas atingem apenas parcialmente os aspectos vários que demandam, ainda, novas determinações e seu acompanhamento.

 Pelo exposto, eventual declaração de simples cessação do estado de coisas inconstitucional seria prematuro e incongruente com os indicadores a serem objeto de seguimento pelo Comitê de Acompanhamento, neste novo ciclo.

Em conclusão, reconheço a permanência de um estado de coisas ainda inconstitucional na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, a ser monitorado em um segundo ciclo, nos termos propostos [1].

Após o voto do relator, o julgamento foi suspenso pelo presidente do Supremo, que sustentou a necessidade de que em razão da em razão da profundidade e da complexidade da questão, o colegiado buscasse a construção de consensos sobre os diversos pontos apresentados”.

3. Necessidade de uma decisão consensual

Não há como negar que a questão de fundo da ADPF é realmente de alta relevância e de grande complexidade, envolvendo uma série de questões estruturais, conforme restou apontado no julgamento do caso.

Nesse sentido, o ministro Barroso expressou sua preocupação com a temática e defendeu a necessidade de adoção de uma solução de consenso dentro do Supremo.

Conforme reportagem publicada aqui mesmo na ConJur (ver aqui), face à relevância da questão de fundo, o ministro asseverou a existência de um entendimento do tribunal de que a solução deve ser produzida em conjunto, sem votos divergentes, para um tema que classificou como “especialmente árduo”, por envolver muitos interesses.

Nas palavras do presidente do Supremo:

“Queremos ar uma mensagem muito clara para o Rio de Janeiro e para todo o país da importância que estamos dando ao tema da segurança pública, que hoje está no topo das prioridades brasileiras em termos de preocupação da população e, consequentemente, também do nosso tribunal” [2].

De fato, é possível observar que a despeito da relatoria da ADPF em questão ser do ministro Edson Fachin, foi o ministro Barroso quem tomou as rédeas do processo de julgamento do caso.

4. Inspiração norte-americana

Não é nenhuma novidade que o ministro Barroso é um entusiasta do constitucionalismo norte-americano. De fato, o ministro estudou nas prestigiadas universidades de Yale e Harvard, de onde confessamente retirou muitas lições valiosas. Em suas obras o ministro por diversas vezes busca realizar uma aproximação entre o Supremo e a Suprema Corte norte-americana.[3]

Da mesma forma, o ministro Barroso tem o costume de ler as biografias de importantes justices da Scotus como, por exemplo, o Chief Justice Warren [4], responsável pela fase ativista da Scotus nos anos 60 e responsável por elaborar a Opinion of the court em importantes julgamentos como o caso Brown v. Board of Education,  que acabou com segregação racial nas escolas dos Estados Unidos, com a superação da doutrina “separate but equal”, estabelecida no precedente de Plessy v. Ferguson [5]. Nesse mesmo sentido, o ministro Barroso já declarou possuir um mapeamento completo das decisões de Warren na Scotus [6]. Assim, desde sua chegada ao STF, tem contribuído para uma guinada em direção a um constitucionalismo e uma Suprema Corte de inspiração nas construções norte-americanas.

Por conseguinte, em face das declarações apresentadas publicamente e de seu papel de liderança dentro do Supremo, parece bastante razoável inferir que foi do ministro Barroso a ideia de elaboração de um voto único, expressado por meio de uma opinião da corte, tal qual ocorre na Scotus.

Com efeito, existem duas formas mais comuns de opinions na Scotus:  as mais corriqueiras são aquelas divulgadas ou anunciadas em casos nos quais o tribunal realizou debates orais. Cada opinion apresenta a decisão da corte e sua fundamentação, podendo incluir tanto o parecer majoritário quanto eventuais opiniões concordantes ou dissidentes. Todas as opiniões relacionadas a um mesmo caso são publicadas em conjunto e precedidas por um syllabus (resumo) preparado pelo Reporter of Decisions, que sintetiza a decisão do tribunal. O juiz responsável pela redação da opinião majoritária ou principal frequentemente resume o voto durante uma sessão da corte.

O Tribunal também pode decidir casos por meio de opiniões per curiam, que não identificam o autor. Esses casos costumam ser resolvidos de forma sumária, muitas vezes sem debates orais. No entanto, opiniões per curiam já foram emitidas em casos com argumentação oral. Foi este segundo tipo de opinion que inspirou o Supremo no julgamento da ADPF.

5. Opinião da corte?

Conforme se pode verificar durante a sessão do dia 3 de abril de 2025, o consenso obtido entre os ministros não foi tão pacífico quanto uma decisão deste tipo poderia sugerir. Com efeito, os quatro ministros fizeram questão de se manifestar expondo pontos que ficaram de fora daquilo que seria a “opinião da corte”, o que indica que aquilo que foi lido não seja propriamente… a opinião da corte. Ademais, conforme apontam reportagens de bastidores, havia severas discordâncias entre os ministros sobre aquilo que estava sendo proposto [7].

De fato, há que se considerar que inexiste previsão legal ou regimental que autorize esse tipo de julgamento. Nesse sentido, convém apontar que não há previsão na Constituição, no C ou mesmo no regimento interno do STF para que seja redigida uma “opinião da corte”, formulada a portas fechadas,  a qual foi apenas lida em um pronunciamento. Nesse ponto, vale lembrar algo que o professor Lenio Streck há muito vem apontando como sendo uma das questões críticas do Direito brasileiro: o problema do realismo jurídico. Este realismo pode ser expresso em uma frase que também tem origem norte-americana: o Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é [8]. Nesse caso, o C e o RISTF transformaram-se naquilo que o Supremo disse que são: mesmo que não houvesse previsão, assim mesmo foi feito.

Todavia, o que está expresso na Constituição é o dever de publicidade e a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, conforme o artigo 93, IX:

“IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (grifo do colunista).

Aqui, na esteira da CHD, deve ser dito que a fundamentação de uma decisão judicial é condição de possibilidade para que se possa obter uma Resposta Adequada à Constituição. No caso concreto não houve um julgamento público do caso, mas sim um pronunciamento do presidente do Supremo – que não era o relator da ação – em que foram lidas uma série de determinações ao estado do Rio de Janeiro, sendo estas determinações apenas o dispositivo da ação.

Outrossim, a despeito do voto inicialmente proferido pelo ministro Edson Fachin, a decisão per curiam diverge de maneira significativa do voto inicial, sobretudo naquilo que diz respeito ao reconhecimento do estado de coisas inconstitucional na segurança pública do Rio de Janeiro. Assim, tendo por base os fundamentos inicialmente apresentados pelo ministro Fachin, há de se reconhecer que as premissas não se concatenam com as conclusões obtidas ao final.

Deve ser destacado, ainda, que uma das obrigações impostas pelo dever de fundamentação expresso na Constituição é que as decisões do Poder Judiciário devem estar formuladas a partir de raciocínios jurídicos, ou seja: devem estar expressos a partir do Direito. Esse é um ponto determinante que parece ter escapado na formulação desta decisão per curiam, os comandos expressos na decisão do Supremo estão desprovidos de uma fundamentação idônea que diga por quais razões do Direito a decisão certa foi aquela que foi adotada e por quais razões não poderia ter sido outra a solução para o caso. Nesse ponto, a decisão do Supremo não se concatena nem com aquilo que ocorre na Scotus.

Aqui vale repisar, mais uma vez, uma das lições da CHD  sobre a fundamentação das decisões judiciais, aquilo que o professor Lenio Streck denominou de target effect (ou efeito alvo): primeiro se lança a flecha, depois se pinta o alvo em volta. O acerto é garantido. Em termos de decisão judicial é o caso clássico de primeiro se decide, depois se inventam as razões. Isso não é fundamentação. A fundamentação de uma decisão judicial não está lá apenas para dar uma aparência de justeza, ela deve estar construída em cima do Direito e deve ser ível de ser verificada por toda a comunidade em suas premissas e conclusões.

No caso desta ADPF o Supremo parece ter ido mais a fundo do que anteriormente, dispensando inteiramente a devida fundamentação do julgamento e se limitando a apresentar uma série mandamentos desprovidos de uma fundamentação idônea — ressalta-se, construída e amparada no Direito.

Embora seja salutar que o Supremo busque a construção de consensos em suas decisões, estes consensos não podem ser artificiais, sobretudo quando são manifestadas discordâncias pontuais sobre o tema. Da mesma forma, não pode ser sacrificada a publicidade dos julgamentos, com decisões tomadas a portas fechadas sobre as quais não se sabe o que foi debatido ou mesmo quais seriam as divergências existentes e sobre quais pontos estas diziam respeito. Além disso, a construção de um consenso e a tentativa de adoção de um julgamento que expresse a ‘opinião da corte’ sobre uma determinada questão não pode solapar o direito fundamental a uma decisão devidamente fundamentada no Direito e na Constituição. Aqui, mais uma vez, devemos lembrar uma máxima que integra a Crítica Hermenêutica do Direito: fundamentos não são ornamentos.

 


[1] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 635/Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.migalhconjur-br.noticiadealagoas.com.br/arquivos/2025/4/FEA19A032F3013_635-VotoPerCuriam-versaofinal.pdf>. o em: 10 abr. 2025.

[2] Consultor Jurídico. Disponível em: </2025-mar-26/barroso-diz-que-11-ministros-do-stf-vao-produzir-voto-conjunto-na-adpf-das-favelas/>. o em: 10 abr. 2025.

[3] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 7. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018,  im.

[4] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: O STF, seus bastidores e suas crises. Companhia das Letras: São Paulo, 2019. p. 102.

[5] BAUM, L. The Supreme Court. 13. ed. Washington, D.C.: CQ Press, 2019. E-book. N.P.

[6] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: O STF, seus bastidores e suas crises. Companhia das Letras: São Paulo, 2019. p. 102.

[7] RECONDO, F. Das 11 ilhas ao Triângulo das Bermudas: os julgamentos a portas fechadas no STF. Disponível em: <https://conjur-br.noticiadealagoas.com/stf/do-supremo/das-11-ilhas-ao-triangulo-das-bermudas-os-julgamentos-a-portas-fechadas-no-stf>. o em: 11 abr. 2025.

[8] A frase surge derivada de um escrito de Oliver Wendell Holmes, The Path of Law, onde refere que o Direito “nada mais é que as profecias do que as cortes irão fazer, e nada além disso, é o que é que eu entendo por Direito” (HOLMES JR, Oliver Wendell. The path of the law. [s.l.] Floating Press, 2009. p. 9.)

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