Geopolítica da soja e limites do direito na defesa da soberania alimentar
26 de abril de 2025, 17h28

O Brasil lidera o ranking mundial de exportação de soja. Abastece mercados poderosos — como China, União Europeia e Estados Unidos — enquanto enfrenta insegurança alimentar dentro do próprio território. A guerra tarifária e o aumento da demanda internacional tornaram a soja mais lucrativa para exportação, mas também mais cara para consumo interno. Isso nos obriga a um debate urgente: qual o papel do direito diante desse cenário? Quando o alimento se torna ativo financeiro, o sistema jurídico consegue garantir o direito à alimentação como manda a Constituição? Ou cede à lógica dos mercados internacionais?
A Constituição estabelece, no artigo 6º, o direito à alimentação como um direito social. Complementando esse comando, a Lei nº 11.346/2006 (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional) cria mecanismos institucionais para garantir esse direito, articulando políticas públicas e participação social.
No entanto, a prática revela um abismo entre norma e realidade. Em 2022, mais de 33 milhões de brasileiros conviviam com a fome, um número alarmante para uma potência agrícola. A produção de grãos, especialmente da soja, é majoritariamente voltada à exportação. A destinação das terras e dos incentivos fiscais não prioriza culturas alimentares básicas, como arroz e feijão, que abastecem a mesa do brasileiro comum.
Poder global
A soja não é apenas um produto agrícola. É uma ferramenta de poder global. A dependência da China por proteína vegetal fortaleceu o papel do Brasil como parceiro estratégico, mas também o tornou vulnerável. Essa relação econômica afeta decisões políticas internas, inclusive ambientais e regulatórias.
Historicamente, o Brasil vem adaptando seu marco jurídico para favorecer a produção de commodities. A política de crédito rural, o regime tributário da exportação (com isenções como o artigo 149, §2º, I da Constituição) e a ausência de restrições à exportação de alimentos essenciais demonstram que o direito tem sido instrumento de ampliação da lógica mercantil.
Neste contexto, ressurgem as reflexões de juristas sobre a natureza não neutra do direito: ele pode tanto proteger quanto ser instrumentalizado para a dominação. O arcabouço normativo, apesar de sólido em teoria, se enfraquece diante de políticas públicas que privilegiam interesses do mercado externo em detrimento da soberania interna.

O conceito de soberania alimentar, ainda pouco desenvolvido na doutrina brasileira, é reconhecido no plano internacional como direito dos povos à produção e consumo de alimentos adequados às suas culturas, produzidos de forma sustentável e ível. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), do qual o Brasil é signatário, consagra esse direito no artigo 11.
Direitos fundamentais e sociais
A doutrina de Fábio Konder Comparato já afirmava que os direitos fundamentais devem ter eficácia imediata, especialmente os direitos sociais. No mesmo sentido, Ingo Sarlet aponta que a dignidade da pessoa humana exige políticas públicas efetivas e controle judicial quando houver omissão estatal.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a justiciabilidade dos direitos sociais em decisões como a ADPF 347, sobre o sistema carcerário. Esse entendimento deve ser ampliado para o campo da alimentação e soberania produtiva.
Não basta produzir. É preciso garantir o o. A soja tornou o Brasil uma potência exportadora, mas isso não se traduziu em segurança alimentar. O sistema jurídico, embora avançado em declarações, tem sido tímido em ações. O direito precisa afirmar, com mais força, que a dignidade humana está acima da balança comercial.
A luta por soberania alimentar é também uma disputa por interpretações. O direito deve proteger o povo brasileiro do risco de depender exclusivamente de uma lógica de mercado que transforma comida em cifra e vida em estatística.
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Referências
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
COMPARATO, Fábio Konder. Os direitos fundamentais e a Constituição: a construção da democracia no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2016.
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