Opinião

Garantismo em tempos de histeria: entre perspectiva de gênero e decisionismo judicial

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15 de fevereiro de 2025, 6h09

Quando a imparcialidade se torna um problema (ou melhor, uma tragédia jurídica)

No artigo “O garantismo em crise: Lenio Streck e o protocolo de perspectiva de gênero”, de Iuri Victor Romero Machado, publicado anteontem nesta ConJur, defende-se que protocolos de julgamento com “perspectiva de gênero e raça” seriam capazes de aprimorar a imparcialidade judicial. Contudo, tal tese ignora algo crucial: a segurança jurídica não combina com relativismos hermenêuticos baseados em categorias identitárias. A questão central não reside na sensibilidade social do juiz — afinal, quem seria ele para negar tal atributo? —, mas sim na integridade do método jurídico. Como diria Niklas Luhmann — e repete-se porque é fundamental —, o direito é um sistema autopoiético cuja função é estabilizar expectativas normativas, não resolver conflitos morais ou ideológicos.

A crítica desenvolvida parte de três eixos teóricos — e pede-se licença para ser didático, pois o tema merece clareza:

  1. Hermenêutica jurídica: A atividade judicial deve ser guiada pela neutralidade axiológica, conforme propôs Max Weber. Ou seja, nada de substituir a norma por juízos de valor externos. Isso não é interpretação; é militância disfarçada de jurisdição.

  2. Garantismo penal: Luigi Ferrajoli já ensinou que o direito penal é ultima ratio. Ele serve para limitar o poder punitivo do Estado mediante regras estritas de imputação, não para promover justiça social ou reparar opressões históricas.

  3. Direito internacional: Instrumentos como o Pacto de São José da Costa Rica vedam discriminações processuais, mesmo quando justificadas por narrativas de reparação histórica. E ponto final.

A introdução desses “filtros interpretativos” baseados em gênero ou raça não apenas viola esses pilares, como também institucionaliza o decisionismo judicial — fenômeno criticado por Carl Schmitt e pelo próprio Lenio Streck, que alerta para os riscos de transformar o direito em mero instrumento de agendas políticas. Cá entre nós, isso é grave. Muito grave.

Direito, moral e a substituição da norma pelo contexto social: a crise da neutralidade axiológica

A teoria pura do direito de Hans Kelsen oferece uma lição fundamental que frequentemente é mal compreendida: a separação entre a ciência do direito e a moral não implica necessariamente a neutralidade do aplicador do direito. Kelsen, ao propor sua famosa distinção entre Sein (ser) e Sollen (dever ser), estava preocupado em estabelecer uma metodologia científica para o estudo do direito, isenta de juízos morais ou valorativos. Contudo, isso não significa que o juiz, enquanto aplicador do direito, esteja imune à influência de escolhas axiológicas. Pelo contrário, Kelsen sabia que o juiz, ao preencher as lacunas normativas ou interpretar conceitos jurídicos indeterminados, inevitavelmente realiza um ato de vontade — algo que ele mesmo chamou de “decisão jurídica”.

Esse ponto é essencial para compreender a crítica aqui desenvolvida. Quando um magistrado adota a tal “perspectiva de gênero”, ele não está apenas interpretando a lei; está substituindo a subsunção factual por uma metodologia consequencialista, na qual o resultado desejado (ex.: “reparar opressões históricas”) precede a análise da norma. Isso não é interpretação jurídica no sentido kelseniano; é um exercício de poder político disfarçado de jurisdição.

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H.L.A. Hart, em “O Conceito de Direito” , complementa essa análise ao distinguir entre regras primárias (que impõem deveres) e secundárias (que definem como as regras são reconhecidas e aplicadas). A introdução de critérios identitários corrompe as regras secundárias, pois substitui o teste de validade legal (ex.: constitucionalidade) por um teste de adequação política. O caso People v. Turner (2016) , nos EUA, ilustra esse risco: o juiz Aaron Persky foi destituído por não aplicar a pena máxima a um réu acusado de agressão sexual, sob a alegação de que ignorou o “contexto de violência sistêmica contra mulheres”. O episódio revela uma inversão perigosa: a opinião pública a a ditar a interpretação da lei, em detrimento da segurança jurídica.

Hans-Georg Gadamer oferece uma lição importante: sua teoria da hermenêutica jurídica enfatiza que a interpretação não pode ser dissociada do horizonte histórico-cultural do intérprete. No entanto, Gadamer também alerta que a interpretação não pode ser subordinada a interesses contingentes ou ideologias do presente. Quando juízes utilizam filtros interpretativos baseados em gênero ou raça, eles não estão aplicando a hermenêutica gadameriana; estão distorcendo-a para servir a uma agenda política específica.

A crítica, portanto, não se dirige à consideração de contextos sociais na fase de individualização da pena (como prevê o artigo 59 do brasileiro), mas à contaminação da fase de tipificação. Como destacou Ronald Dworkin, a integridade do direito exige que princípios morais sejam incorporados apenas se compatíveis com o sistema normativo, nunca como substitutos da lei.

Garantismo e o perigo da justiça de identidade: Ferrajoli vs. Ontologia Grupal

O garantismo, na visão de Luigi Ferrajoli, é uma teoria negativa do direito. Seu objetivo não é promover justiça social, mas impedir arbitrariedades estatais por meio de limites epistemológicos e procedimentais. Ferrajoli distingue entre direitos fundamentais (que protegem indivíduos) e direitos políticos (que organizam a coletividade). Protocolos de gênero, ao privilegiarem grupos identitários, confundem essas esferas, transformando o processo penal em instrumento de reconhecimento identitário.

O caso  Ricci v. DeStefano (2009) exemplifica esse conflito. A Suprema Corte dos EUA anulou promoções de bombeiros negros porque o município de New Haven invalidou um concurso que não atingira “diversidade racial”. O voto de Anthony Kennedy destacou que igualdade processual é conditio sine qua non para o Estado de Direito: “A justiça não pode ser cega apenas quando convém”. O caso expõe a tensão entre ação afirmativa (legítima em políticas públicas) e desigualdade processual (inissível no Judiciário).

É crucial diferenciar discriminação positiva (permitida em cotas educacionais, por exemplo) de viés interpretativo (que distorce a aplicação da lei). Enquanto a primeira opera no âmbito legislativo e istrativo, o segundo corrompe a função judicante, violando o princípio da tipicidade (nullum crimen sine lege stricta).

Niklas Luhmann oferece uma lição fundamental: o direito, como sistema autopoiético, tem a função de estabilizar expectativas normativas, não de resolver conflitos morais ou ideológicos. Quando juízes começam a reinterpretar a lei à luz de agendas identitárias, comprometem essa função sistêmica, transformando o direito em um instrumento de dominação política.

Direito internacional e a isonomia processual: falácia dos protocolos interpretativos

A defesa de protocolos interpretativos baseados em perspectiva de gênero e raça comete um erro fatal: ignora completamente os princípios basilares do direito internacional e os limites impostos pelos tratados de direitos humanos. Não apenas isso, tenta instrumentalizar esses tratados para justificar uma agenda política que subverte o próprio Estado de Direito. Vamos desmontar essa construção equivocada, peça por peça.

1. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PID): a igualdade processual não é negociável

O artigo 14 do PID é cristalino: “Todos são iguais perante os tribunais e cortes de justiça”. Esse dispositivo não deixa margem para interpretações criativas ou relativismos hermenêuticos. Ele veda qualquer forma de discriminação processual, seja ela explícita ou disfarçada sob o manto de “reparação histórica” ou “perspectiva de gênero”.

O problema central reside no fato de que ao defender protocolos interpretativos que privilegiam determinados grupos em detrimento de outros, viola-se frontalmente esse princípio universal de igualdade. O PID não foi redigido para promover justiça social ou reparar opressões históricas — isso cabe ao Legislativo, que tem legitimidade democrática para tal. O papel do Judiciário, conforme reconhecido pelo próprio tratado, é garantir que todos os indivíduos tenham o a um processo justo, imparcial e isento de preconceitos.

Introduzir filtros interpretativos baseados em categorias identitárias não apenas subverte essa finalidade, como também cria um sistema de privilégios processuais que contraria o espírito do tratado. Transforma-se o direito internacional em um instrumento de arbitrariedade judicial, exatamente o oposto do que os tratados internacionais foram criados para evitar.

2. Convenção Americana de Direitos Humanos: o devido processo legal como limite absoluto

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu artigo 8º, consagra o princípio do devido processo legal como uma garantia absoluta. Este dispositivo não apenas assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa, como também proíbe expressamente interpretações judiciais que privilegiem ou prejudiquem partes com base em sua identidade grupal.

Ignora-se completamente esse dispositivo ao defender protocolos interpretativos que introduzem assimetrias processuais. Argumenta-se que esses protocolos são necessários para combater opressões estruturais, mas esquece-se que o combate à violência de gênero ou racial não pode servir de pretexto para violar o devido processo legal. O caso A.B. v. Eslovênia (2020), julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos, ilustra bem esse ponto: a Corte reiterou que “o combate à violência de gênero não autoriza restrições ao devido processo legal”.

Confunde-se justiça material com justiça processual. Enquanto a primeira pode ser promovida por políticas públicas e legislação, a segunda deve ser resguardada como um limite absoluto. Ao misturar essas esferas, compromete-se a integridade do sistema jurídico e violam-se os princípios fundamentais do direito internacional.

3. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: a hermenêutica não é um cheque em branco

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) estabelece que a interpretação de tratados deve seguir o “sentido comum dos termos”, levando em conta o contexto e o objeto do tratado. Isso significa que os tratados de direitos humanos não podem ser reinterpretados à luz de agendas políticas contemporâneas.

Outro erro crasso é tentar justificar protocolos interpretativos com base na Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher). Mas a Cedaw, como qualquer outro tratado internacional, exige igualdade material — ou seja, o igualitário a oportunidades econômicas, sociais e culturais. Ela não autoriza, em hipótese alguma, a criação de assimetrias processuais no âmbito judicial.

Ao distorcer o texto do tratado para justificar teses ideológicas, violam-se os princípios básicos de hermenêutica internacional. Não se está interpretando o direito internacional; está-se manipulando-o para servir a uma agenda política específica.

4. O Caso Julian Assange: a instrumentalização do combate à violência de gênero

O caso de Julian Assange talvez seja um dos exemplos mais emblemáticos de como narrativas sociopolíticas podem ser instrumentalizadas para justificar violações ao devido processo legal. Promotores suecos utilizaram alegações de “violência estrutural contra mulheres” para justificar a flexibilização de garantias processuais em fases preliminares do processo. Contudo, essa abordagem foi amplamente questionada, inclusive pelo Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária das Nações Unidas que, em 2016, considerou a detenção de Assange arbitrária e destacou graves violações a seus direitos fundamentais, incluindo restrições ilegítimas à sua liberdade de movimento e falta de o adequado à defesa.

Comete-se o mesmo erro ao defender protocolos interpretativos baseados em gênero ou raça. Ignora-se que o combate à violência de gênero — por mais legítimo que seja — não pode ser usado como justificativa para subverter os princípios fundamentais do direito internacional. Ao fazê-lo, não se está promovendo justiça; está-se promovendo arbitrariedade.

5. Direitos Humanos não são relativos

Os direitos humanos, como reconhecidos pelos tratados internacionais, são universais e inalienáveis. Eles não podem ser relativizados em função de agendas políticas ou identitárias. Quando se introduz filtros interpretativos baseados em categorias como gênero ou raça, cria-se, na prática, uma hierarquia de direitos que beneficia uns em detrimento de outros.

Isso não é progresso; é regressão. É a substituição do Estado de Direito por um sistema de privilégios processuais que viola o princípio da igualdade perante a lei. E isso não é apenas antidemocrático; é antijurídico.

Ao defender esses protocolos interpretativos, não se fortalece o direito internacional; corrói-se sua credibilidade. Transforma-se o direito internacional em um instrumento de dominação política, exatamente o oposto do que os tratados internacionais foram criados para evitar.

O Direito Internacional como bastião contra o decisionismo judicial

O direito internacional — e, em particular, os tratados de direitos humanos — oferece uma resposta inequívoca à tese defendida no artigo analisado. Protocolos de julgamento com perspectiva de gênero ou raça não apenas violam os princípios fundamentais do direito internacional, como também expõem a hipocrisia e a seletividade dessa proposta.

O direito internacional não é um instrumento de redenção histórica, mas um campo de disputas ideológicas. Sua função não é resolver conflitos morais ou ideológicos, mas sim impor limites claros ao poder estatal. Permitir que juízes incorporem narrativas identitárias em suas decisões é abrir caminho para um novo tipo de arbítrio — benevolente, talvez, mas ainda assim arbitrário.

A estupidez como método não é exclusividade do direito interno. Ela também permeia o direito internacional, transformando-o em um instrumento de dominação política e ideológica. Nesse cenário, o direito internacional serve como um espelho da hipocrisia global.

Para encerrar, Lenio Streck tem acertadamente alertado para os riscos de transformar o direito em mero campo de experimentações ideológicas. Suas advertências são profundas e merecem atenção: ao falar de garantismo, ele não se refere à defesa simplista de formalismos vazios, como erroneamente sugerido pelo autor analisado.

Pelo contrário, sua discussão é mais ampla e densa, centrada em como fazer democracia no direito e pelo direito. Isso significa que o juiz não pode partir de juízos prévios ou vieses interpretativos, sob pena de incorrer em desvio de finalidade teórica. Quando juízes adotam filtros como perspectiva de gênero ou raça sem base normativa sólida, eles não estão promovendo justiça; estão corroendo a própria essência do direito como sistema de limites igualitários, destinado a proteger a todos, sem exceções. Ao agir assim, destroem-se os pilares do Estado de Direito, exatamente aquilo que o garantismo de Streck busca preservar.

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Referências bibliográficas

BADARÓ, Rui Aurélio De Lacerda. A estupidez como método: Crônica do Direito Internacional Contemporâneo . Disponível em: /2025-jan-28/a-estupidez-como-metodo-cronica-do-direito-internacional-contemporaneo/ . o em: 14 de fevereiro de 2025.

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FERRAJOLI, Luigi.Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal . Madrid: Editorial Trotta, 2004.

GADAMER, Hans-Georg.Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica . Petrópolis: Vozes, 2007.

HART, H.L.A.O Conceito de Direito . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

KELSEN, Hans.Teoria Pura do Direito . São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LUHMANN, Niklas.Law as a Social System . Oxford: Oxford University Press, 2004.

STRECK, Lenio.Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas . São Paulo: Saraiva, 2010.

Casos jurídicos

PEOPLE v. TURNER. Corte Superior da Califórnia, EUA, 2016.

RICCI v. DESTEFANO.Suprema Corte dos Estados Unidos, 2009.

A.B. v. ESLOVÊNIA.Corte Europeia de Direitos Humanos, 2020.

Tratados Internacionais

CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Pacto de São José da Costa Rica). Adotada em 22 de novembro de 1969. Entrada em vigor: 18 de julho de 1978.

CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS. Adotada em 23 de maio de 1969. Entrada em vigor: 27 de janeiro de 1980.

CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER (CEDAW). Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979. Entrada em vigor: 3 de setembro de 1981.

PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS (PID). Adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966. Entrada em vigor: 23 de março de 1976.

Outros documentos

MACHADO, Iuri Victor Romero. “O garantismo em crise: Lenio Streck e o protocolo de perspectiva de gênero”. Publicado no CONJUR, 13 de fevereiro de 2025. Disponível em: /2025-fev-13/o-garantismo-em-crise-lenio-streck-e-o-protocolo-de-perspectiva-de-genero/ . o em:13 de fevereiro de 2025.

STRECK, Lenio Luiz. Garantismo, IA e protocolos do CNJ: os algoritmos brigarão entre si. Disponível em: /2025-fev-06/garantismo-ia-e-protocolos-do-cnj-os-algoritmos-brigarao-entre-si/ . o em: 13 de fevereiro de 2025.

STRECK, Lenio Luiz. As armadilhas dos julgamentos sob perspectiva propostas pelo CNJ. Disponível em: /2024-dez-05/as-armadilhas-dos-julgamentos-sob-perspectiva-propostas-pelo-cnj/ . o em: 13 de fevereiro de 2025.

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