Opinião

Encruzilhada federativa: municípios superendividados e a ameaça da reforma tributária

Autor

1 de junho de 2025, 6h30

Com a iminente implementação da reforma tributária brasileira e a consequente instalação do Conselho Superior do Comitê Gestor do IBS, responsável pela istração do novo Imposto sobre Bens e Serviços, emerge um debate de crucial importância e urgência: a situação de extrema vulnerabilidade financeira dos entes subnacionais superendividados, com destaque para os municípios. Esse cenário, já complexo, é agravado por tensões políticas e pela existência de mecanismos constitucionais que podem, paradoxalmente, aprofundar a crise em vez de solucioná-la, colocando em xeque o próprio pacto federativo.

Santo André/Divulgação

A recente controvérsia judicial entre a Frente Nacional de Prefeitos e a Confederação Nacional de Municípios, que disputam a representatividade e a participação municipal na governança do novo sistema tributário, é mais do que uma mera disputa por poder; ela reflete uma preocupação profunda e subjacente: o risco real de um esvaziamento da autonomia financeira e política dos municípios. Essa apreensão se intensifica diante das novas regras fiscais e, em particular, das severas sanções previstas para os entes que não conseguem honrar seus débitos com precatórios.

O cerne dessa ameaça reside no artigo 104, inciso IV [1], do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Esse dispositivo, em conjunto com a definição de “superendividado” estabelecida pelo § 4º do artigo 59 da Resolução nº 303 do Conselho Nacional de Justiça [2], cria um cenário alarmante. Municípios que não cumprem seus planos anuais de pagamento de precatórios ficam sujeitos à suspensão do o a transferências constitucionais e, crucialmente, a receitas tributárias. Com a reforma, isso significa que poderão ser impedidos de ar os valores de seus próprios tributos, como o Imposto Sobre Serviços, que serão recolhidos de forma centralizada pelo novo Comitê Gestor.

Desconexão com a realidade

Essa previsão constitucional representa um grave atentado ao pacto federativo, um dos pilares da República brasileira. Ao condicionar o o a tributos que são, por determinação constitucional, de titularidade municipal – como os descritos nos §§ 1º e 2º do artigo 158 da Constituição – ao cumprimento de obrigações financeiras, o sistema cria um ciclo vicioso. Muitas dessas dívidas, vale ressaltar, são fruto de gestões adas ou de desafios estruturais que fogem ao controle imediato dos atuais es. Impedir o o a essas receitas compromete diretamente a capacidade de financiamento de políticas públicas essenciais, como saúde, educação, transporte, saneamento e segurança urbana, afetando a vida diária dos cidadãos e a própria razão de ser dos municípios.

Spacca

A aplicação automática de uma penalidade tão drástica, sem a devida consideração por instrumentos de renegociação, planejamento fiscal ou alternativas compensatórias — muitas das quais previstas na própria Constituição —, demonstra uma perigosa desconexão com a realidade de milhares de municípios brasileiros. Muitos enfrentam dificuldades estruturais, econômicas e sociais para honrar dívidas judiciais que se acumularam ao longo de décadas. Punir de forma indiscriminada, sem analisar as causas do endividamento e sem oferecer saídas viáveis, é ignorar a complexidade do federalismo brasileiro e as desigualdades regionais e locais que o marcam.

O novo arranjo tributário, concebido com os nobres objetivos de simplificar o sistema, aumentar a eficiência econômica e promover a justiça fiscal, não pode, sob nenhuma hipótese, se tornar um instrumento de coerção ou de fragilização institucional dos entes locais. É fundamental que o Comitê Gestor do IBS, ao iniciar suas atividades, atue com extrema sensibilidade federativa. Sua missão deve incluir a garantia de que a transição para o novo modelo não apenas evite o aprofundamento das desigualdades entre os entes da Federação, mas também respeite e fortaleça a autonomia financeira dos municípios, um alicerce indispensável da democracia constitucional brasileira.

ISS

Nesse contexto, é preciso analisar com atenção o impacto sobre o Imposto Sobre Serviços. Esse tributo, que será incorporado ao IBS, representa, para muitos municípios, a principal fonte de receita corrente. Diferentemente do Imposto Predial e Territorial Urbano, cuja arrecadação se concentra majoritariamente no início do ano, o ISS gera um fluxo contínuo e relativamente previsível de recursos ao longo de todo o exercício fiscal. Essa constância é vital para a manutenção das políticas públicas municipais em bases regulares, permitindo o pagamento de salários, a manutenção de serviços e a realização de investimentos.

O paradoxo se acentua quando observamos que, para os entes superendividados, as maiores dificuldades no pagamento de precatórios tendem a ocorrer justamente no final do exercício financeiro. É nesse período que os Tribunais de Justiça costumam intensificar a aplicação das sanções previstas no artigo 104 do ADCT. Com a vigência da Emenda Constitucional nº 132/2023, a aplicação deste artigo poderá resultar no bloqueio das parcelas do IBS correspondentes ao antigo ISS. Isso criaria uma situação de verdadeiro caos orçamentário e fiscal, paralisando a istração pública municipal e privando a população de serviços essenciais, precisamente no momento em que os recursos já são mais escassos.

Essa medida, ao restringir de forma tão severa o exercício da autonomia financeira municipal, compromete seriamente o equilíbrio federativo. Impõe aos municípios uma camisa de força que desconsidera suas capacidades e suas realidades, transformando o Comitê Gestor em um potencial algoz, em vez de um parceiro na gestão fiscal.

Apoio financeiro

Felizmente, essa preocupação ecoa no Congresso. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 66, de 2023, que visa instituir medidas de apoio financeiro aos municípios, incluindo novos prazos para parcelamento de débitos previdenciários, tornou-se palco para uma iniciativa crucial. O deputado federal Marangoni (União-SP) apresentou uma emenda propondo a revogação expressa do inciso IV do artigo 104 do ADCT.

A justificativa para essa emenda é clara e alinha-se perfeitamente com a necessidade de preservar a autonomia municipal e o pacto federativo. Argumenta-se que, em consonância com os objetivos da própria PEC 66/2023, é vital que os gestores públicos tenham autonomia para gerir os recursos municipais. A emenda busca evitar a retenção automática de recursos para pagamento de precatórios sobre os valores dos rees da reforma tributária. Aponta-se, ainda, que retenções e descontos automáticos podem ser instrumentos de uso indevido de recursos, como já observado em outras situações. A revogação, portanto, é vista como um o essencial para aperfeiçoar a PEC e garantir que os municípios possam, de fato, se beneficiar das medidas de apoio financeiro sem o risco iminente de um colapso fiscal induzido pelas sanções relativas aos precatórios.

A não revogação do inciso IV do artigo 104 do ADCT representa um perigo real e iminente de quebra do pacto federativo. Manter essa espada de Dâmocles sobre a cabeça dos municípios, especialmente no momento delicado de transição para um novo sistema tributário, é minar a confiança, a cooperação e o equilíbrio que devem reger as relações entre União, estados e municípios. A autonomia municipal não é um favor, mas uma conquista constitucional e uma condição essencial para uma democracia vibrante e responsiva às necessidades locais.

É, portanto, urgente e imperativo que o Congresso reavalie os efeitos da combinação entre a reforma tributária e as sanções por precatórios. A aprovação da emenda proposta pelo deputado Marangoni, revogando o inciso IV do artigo 104 do ADCT, seria um o fundamental para preservar o equilíbrio federativo, garantir a sustentabilidade das finanças municipais e assegurar que a reforma tributária cumpra sua promessa de modernização sem sacrificar a autonomia e a capacidade de ação dos entes que estão na linha de frente do atendimento ao cidadão. O futuro do federalismo brasileiro depende dessa sensibilidade e dessa correção de rumos.

 


[1] “Art. 104. Se os recursos referidos no art. 101 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para o pagamento de precatórios não forem tempestivamente liberados, no todo ou em parte:

IV – os Estados e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços reterão os rees previstos, respectivamente, nos §§ 1º e 2º do art. 158 da Constituição Federal e os depositarão na conta especial referida no art. 101 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para utilização como nele previsto. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023).”

[2] “Art. 59. O depósito de que trata o art. 101 do ADCT corresponderá a 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre a Receita Corrente Líquida – RCL do ente devedor, apurada no segundo mês anterior ao do depósito, considerado o total da dívida de precatórios.
…§4º. Às entidades superendividadas, ou seja, aquelas que possuem comprometimento mensal superior a 5% (cinco por cento) da RCL, é facultada a observância de ree mensal de recursos, incluídos neste os orçamentários e os adicionais, não inferior a 5% (cinco por cento) da RCL. (redação dada pela Resolução n. 482, de 19.12.2022).”

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!