Opinião

O novo regime aduaneiro para o setor de petróleo e gás na reforma tributária

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2 de junho de 2025, 19h33

A reforma tributária brasileira, consolidada por meio da Emenda Constitucional nº 132/2023 e recentemente regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, marca um dos momentos mais significativos da reestruturação fiscal no país. O novo modelo substitui tributos fragmentados e cumulativos por dois grandes tributos sobre o consumo — o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — com o objetivo de conferir maior racionalidade, neutralidade e transparência ao sistema tributário nacional.

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Em meio a essa transformação, destaca-se a manutenção e reformulação de regimes especiais, imprescindíveis para determinados setores estratégicos da economia. Dentre eles, o setor de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos fluidos mereceu tratamento específico, considerando sua centralidade na matriz energética e no equilíbrio da balança comercial brasileira. O artigo 93 da LC nº 214/2025 estabelece o novo regime aduaneiro especial para petróleo e gás, promovendo não apenas uma adaptação técnica ao novo modelo de tributação, mas também reafirmando o papel de estímulo à atividade exploratória e produtiva, típica desse setor de capital intensivo.

A lógica do novo regime gira em torno da suspensão do pagamento do IBS e da CBS em determinadas operações de importação e aquisição interna de bens, cuja destinação esteja vinculada à cadeia produtiva do setor. Essa suspensão se converte, após o cumprimento de certos requisitos, em alíquota zero — mecanismo que substitui os antigos regimes de isenção ou não incidência e assegura a neutralidade tributária nas etapas de investimento e produção. Trata-se, portanto, de técnica tributária que difere da isenção tradicional: a suspensão configura um diferimento do tributo, condicionado à efetivação da finalidade econômica, enquanto a isenção extingue diretamente a obrigação.

O primeiro eixo do regime, denominado Repetro-Temporário (inciso I), trata da importação de bens com permanência temporária no país, voltados às atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás. Essa modalidade é essencial para viabilizar o uso de plataformas, sondas e equipamentos de elevado custo, cuja aquisição definitiva nem sempre é economicamente viável.

O segundo eixo, o GNL-Temporário (inciso II), prevê a suspensão tributária para bens destinados às atividades de regaseificação, transporte e armazenamento de gás natural liquefeito (GNL), em consonância com os desafios contemporâneos de segurança energética e diversificação da matriz de combustíveis.

Por outro lado, o Repetro-Permanente (inciso III) contempla as operações com permanência definitiva de bens no país, desde que destinados às mesmas finalidades. Neste caso, a suspensão dos tributos se converte em alíquota zero após o prazo de cinco anos, conforme § 2º, assegurando que os bens realmente se vinculem a atividades produtivas e não apenas ingressem no país com fim especulativo. Importante destacar que o § 1º veda a aplicação do benefício à importação de embarcações destinadas à navegação de cabotagem, apoio marítimo e interior, o que tem gerado reações no setor logístico offshore. A justificativa reside na tentativa de evitar distorções concorrenciais com a indústria naval nacional, mas, na prática, pode comprometer parte significativa da cadeia de apoio às operações marítimas de exploração.

Suspensão do IBS/CBS

O regime também prevê, no Repetro-Industrialização (incisos IV e V), a suspensão do IBS e da CBS para a aquisição de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem utilizados na fabricação de produtos finais destinados às empresas do setor. A inovação normativa, prevista no § 4º, é a figura do fabricante intermediário, que adquire os insumos para industrialização de produto intermediário destinado ao setor de petróleo e gás. Tanto essa suspensão (inciso IV e § 4º) quanto a aquisição do produto final (inciso V) convertem-se em alíquota zero com a efetivação da destinação, conforme §§ 5º e 6º. O desenho do regime visa estimular o conteúdo local, fomentar a cadeia de suprimentos nacional e agregar valor à indústria brasileira.

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Adicionalmente, o modelo introduz o Repetro-Entreposto (inciso VI), que contempla a importação ou aquisição interna de bens destinados à conversão ou construção no Brasil sob encomenda de empresa sediada no exterior, com posterior uso em atividades de exploração e produção. Essa modalidade viabiliza a operação de estaleiros nacionais e permite a inserção da indústria brasileira em cadeias globais de suprimentos.

Apesar do desenho sofisticado e promissor, o novo regime não está isento de desafios. O § 3º e o § 7º estabelecem penalidades expressas em caso de descumprimento da finalidade prevista: se o bem importado ou adquirido não for destinado às atividades do setor no prazo de três anos, os tributos suspensos deverão ser recolhidos com multa e juros. Esse fator eleva o risco fiscal das operações, exigindo das empresas uma estrutura robusta de compliance tributário, capaz de garantir rastreabilidade, documentação e comprovação do uso efetivo dos bens. A potencial litigiosidade sobre o que constitui “destinação adequada” é um ponto de atenção relevante, especialmente diante da complexidade técnica envolvida nos projetos de E&P (exploração e produção).

Cláusula de limite temporal

Outro ponto relevante e ainda pouco debatido é a limitação temporal do regime, fixada no § 8º: as suspensões previstas no artigo 93 somente serão aplicáveis até 31 de dezembro de 2040. Tal cláusula temporal impõe um horizonte de vigência para o regime, o que pode comprometer decisões de investimento de longo prazo, típicas do setor de petróleo e gás, cujos ciclos produtivos ultraam facilmente uma década. A depender do contexto político-econômico futuro, essa limitação pode ser objeto de questionamento quanto à sua compatibilidade com os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima.

Em todos os casos, a suspensão dos tributos se converte em alíquota zero nos termos do regulamento, desde que comprovadas as condições legais — seja pelo decurso de prazo, seja pela efetivação do fornecimento ou da destinação produtiva. Essa conversão é fundamental para garantir a não cumulatividade plena, um dos princípios estruturantes do novo modelo tributário de consumo.

Em conclusão, a Lei Complementar nº 214/2025, ao regulamentar os aspectos centrais do novo regime aduaneiro para o setor de petróleo e gás, insere-se num esforço mais amplo de racionalização fiscal e incentivo ao investimento produtivo. Ainda que pendente de regulamentações infralegais, a estrutura do regime é tecnicamente bem desenhada, e sua eficácia dependerá de uma atuação coordenada entre Receita Federal, ANP e demais órgãos reguladores. Resta acompanhar sua implementação concreta e os desdobramentos regulatórios, que serão determinantes para a efetiva consolidação de um ambiente tributário mais moderno, previsível e favorável ao desenvolvimento energético nacional.

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