Opinião

Candidaturas avulsas: avanço democrático ou risco à governabilidade?

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6 de junho de 2025, 13h16

Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal deverá julgar o Recurso Extraordinário nº 1.238.853, que discute a issibilidade ou não de candidaturas avulsas no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de um tema que, não raro, ressurge com a proximidade do período eleitoral, reacendendo o debate entre a ampliação dos direitos políticos e a preservação das estruturas institucionais da democracia representativa.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Atualmente, a discussão tem como pano de fundo a crise contemporânea de representatividade e a ascensão de discursos antissistêmicos, muitas vezes catalisados por personalidades midiáticas que se apresentam como “outsiders”, isentos das amarras e “vícios” do sistema partidário. Em um cenário de desconfiança em relação aos partidos políticos, setores da sociedade aram a defender a possibilidade de candidaturas sem filiação partidária prévia como forma de democratizar o o a cargos eletivos, livres das amarras de um certo despotismo dos partidos em suas estruturas internas.

Contudo, a Constituição de 1988 estabelece, de forma expressa, em seu artigo 14, §3º, inciso V, a necessidade de filiação partidária como condição de elegibilidade. Essa exigência não constitui um mero formalismo burocrático, mas sim um componente estrutural do modelo de democracia representativa adotado pelo constituinte originário, cuja preocupação maior era assegurar a estabilidade e a institucionalidade após o período de exceção do regime militar.

Os defensores da candidatura avulsa amparam-se, dentre outros argumentos, no artigo 23 do Pacto de San José da Costa Rica, que, ao disciplinar os direitos políticos, não impõe a filiação partidária como requisito. Sustentam, portanto, a tese de que o Brasil, ao ratificar o tratado e incorporá-lo ao ordenamento jurídico, estaria obrigado a permitir candidaturas desvinculadas de partidos.

No entanto, a prevalência da norma internacional sobre a Constituição carece de amparo jurídico. A Constituição é a lei fundamental e suprema do Estado, e nenhuma norma infraconstitucional — nem mesmo de caráter supralegal, como é o caso do Pacto de San José da Costa Rica  — pode revogá-la ou restringi-la.

Riscos

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é sólida em rejeitar candidaturas avulsas. No AgR-PetCiv nº 0600743-83, de relatoria do ministro Sérgio Banhos, firmou-se o entendimento de que “a candidatura avulsa é vedada no sistema eleitoral brasileiro, porquanto o legislador constituinte, ao estipular as condições de elegibilidade, prescreveu requisitos objetivos, de modo que apenas os candidatos filiados e escolhidos em convenção partidária podem participar das eleições”.

Spacca

Sob o ponto de vista institucional, permitir candidaturas avulsas representaria um golpe profundo na já fragilizada estrutura partidária nacional. Os partidos políticos, embora alvo de críticas (boa parte das vezes legítimas), são fundamentais para a governabilidade, a formação de consensos e a organização do debate público. Enfraquecê-los ainda mais seria comprometer a coesão do sistema político, acirrando a fragmentação institucional e favorecendo a personalização excessiva do poder.

A mediação partidária, com suas plataformas programáticas, permite uma articulação minimamente racional dos interesses sociais. Sem ela, a democracia corre o risco de tornar-se refém de projetos personalistas, sem enraizamento ideológico, dificultando a formação de maiorias legislativas estáveis e a implementação de políticas públicas de longo prazo.

Ademais, a prevalência de normas constitucionais sobre tratados internacionais, mesmo que de natureza supralegal, é condição sine qua non para a preservação da soberania nacional e da integridade do sistema jurídico brasileiro. Ao STF caberá, portanto, reafirmar a supremacia da Constituição de 1988 como eixo normativo e político da República.

Permitir candidaturas avulsas neste momento seria, na prática, promover uma hipertrofia da figura individual do candidato em detrimento das instituições mediadoras da democracia.

Em tempos de redes sociais, desinformação e populismo digital, esse movimento pode parecer sedutor, mas esconde riscos consideráveis à estabilidade do regime democrático.

Ponderações

Para além dos aspectos jurídicos e políticos, a viabilidade de candidaturas avulsas esbarra em uma série de questionamentos de ordem técnico-istrativa que a Justiça Eleitoral, como guardiã do processo democrático, precisaria ponderar:

– Distribuição de recursos públicos: se viabilizadas as candidaturas avulsas, como ficaria a distribuição de recursos públicos para elas? Seriam beneficiadas pelo Financiamento de Campanha (FEFC)? Em que proporção? A ausência de uma estrutura partidária para gerir esses recursos traria desafios significativos para a fiscalização e a prestação de contas, abrindo margem para informalidades e descontrole.

– o à propaganda de rádio e TV: como teriam tais candidaturas o à propaganda de rádio e TV? A distribuição do tempo de rádio e TV é atualmente vinculada à representatividade dos partidos no Congresso Nacional. Como se daria esse cálculo para um candidato avulso, sem filiação partidária? Isso poderia gerar uma disparidade ainda maior no o à visibilidade, beneficiando apenas aqueles com maior poder econômico ou apelo midiático prévio. Vide a última eleição municipal de São Paulo e a polêmica em torno dos cortes remunerados por candidato.

– Equidade de gênero: essas candidaturas se adequariam ao esforço que institucionalmente tem sido feito pela equidade de gênero, principalmente nos cargos do legislativo? Os partidos políticos, ainda que com desafios, são hoje responsáveis por cumprir as cotas de gênero para candidaturas. Como seria garantida a participação feminina em um cenário de candidaturas avulsas? Isso poderia representar um retrocesso nas políticas de inclusão e representatividade das mulheres na política.

– Quocientes eleitoral e partidário: e quanto aos quocientes eleitoral e partidário? Como seria o critério para aferição destes itens? A lógica atual de distribuição de vagas no legislativo está intrinsecamente ligada ao desempenho dos partidos. A inserção de candidaturas avulsas demandaria uma revisão completa do sistema de cálculo, com o risco de gerar mais complexidade e questionamentos sobre a legitimidade dos resultados.

Aguardemos, com responsabilidade e atenção institucional, a posição da Suprema Corte sobre esse importante debate. Que prevaleça o equilíbrio entre a ampliação dos direitos e a preservação das garantias fundamentais do Estado democrático de Direito.

Autores

  • é bacharel em Direito, especialista em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral, analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Paraná, professor de Direito Eleitoral, coordenador da Abradep e voluntário da Transparência Eleitoral Brasil.

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