Diário de Classe

O algoritmo revoltado e a vitória de pirro pós-moderna

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  • é advogado sócio da Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política doutorando em Ciências Jurídicas membro do Dasein – Núcleo de estudos Hermenêuticos (CNPq) membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção (PUC-SP) sob liderança dos professores Pedro Estevam Alves Pinto Serrano e Luis Manuel Fonseca Pires (Faculdade de Direito da PUC-SP) membro do Grupo de Pesquisa Desafios do Controle da istração Pública Contemporânea sob liderança do professor e desembargador federal do TRF-5 Edilson Nobre Pereira Júnior.   .

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7 de junho de 2025, 8h00

“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer.” 

Albert Camus – Trecho de seu discurso de agradecimento à Academia Sueca, no dia 10 de dezembro de 1957.

 

O Homem Revoltado [1] (em francês, L’Homme Révolté) é um ensaio filosófico escrito por Albert Camus e publicado em 1951. Nas palavras de Camus, esse ensaio se propõe a dar continuidade, diante do assassinato e da revolta, a uma reflexão começada em torno do suicídio e da noção de absurdo.

O livro receberia críticas contundentes e marcaria a ruptura entre ele e Jean-Paul Sartre, talvez o mais influente pensador daquela década. À época, Camus já era reconhecido como grande romancista e filósofo por ter escrito O Estrangeiro e O Mito de Sísifo. Ainda assim, tudo foi posto em questão com a péssima recepção desse novo livro. Paradoxalmente, Camus, que era ateu, precisou de um salto de fé – ou, no mínimo, de um grande ato coragem.

A partir de um conceito de revolta, Camus reavalia a história questionando a legitimidade das revoluções. Criticar o marxismo enquanto Josef Stálin ainda vivia, enquanto Mao Tsé-Tung acabava de tomar o poder, foi interpretado como reacionário e inaceitável. O mundo recém-dividido entre capitalistas e comunistas não era capaz de compreender uma crítica que não viesse de nenhum dos lados. Infelizmente, pouca coisa mudou neste sentido.

Camus certamente não era um reacionário. Mais do que isso, a própria definição do conceito de revolta exige a consciência da injustiça e tomada de ação. A pergunta que Camus nos faz, não obstante, é a que serve de direção durante todo o ensaio: até que ponto essa ação é justificada? Essa é a pergunta que o filósofo faz aos movimentos revolucionários à esquerda e à direita. Se o limite do assassinato é ultraado, seja de forma irracional, como no caso do nazismo, seja de forma racional, como no caso do stalinismo, então é preciso denunciá-los. E assim Camus o fez.

Dizia Camus que no tempo da negação, podia ser útil examinar o problema do suicídio. No tempo das ideologias e do niilismo absoluto, não obstante, é preciso decidir-se quanto ao assassinato. Se nada é verdadeiro nem falso, bom ou mau, a regra será mostrar-se o mais eficaz. Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância. O assassinato, assim, não está certo nem errado. Eis aí o problema do relativismo.

O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, e agora o enfrenta. Toda revolta invoca tacitamente um valor. O valor invocado do nosso tempo é a eficiência. Em nome da eficiência, por exemplo, nosso judiciário aposta na tese do precedentalismo [2]. E, em nome da “máxima eficiência”, aposta-se no uso desmedido da inteligência artificial.

Camus mostra que Scheler, ao criticar o humanitarismo de Bentham e Rousseau, argumentava que os humanitaristas amavam a humanidade em geral para que não se precisasse amar os seres em particular. Uma espécie de amar a humanidade em abstrato, mas não tanto o próximo em concreto. A “máxima eficiência” processual sofre deste mesmo paradoxo: busca-se a máxima eficiência do sistema, em abstrato, enquanto desconsidera o caso particular, em concreto. Trata-se, antes de tudo, de um claro equívoco filosófico.

Esse equívoco é denunciado pelo professor Lenio Streck quando nos ensina que não se pode aplicar um precedente sem identificar a sua ratio e sem fazer o devido distinguishing, da mesma forma que não se pode achar que no texto da norma estão contidas todas as possibilidades de casos concretos, afinal o texto jurídico só pode ser entendido a partir de sua aplicação, isto é, diante de uma coisa, um fato, um caso concreto. Compreender sem aplicação não é compreender. As respostas não surgem antes das perguntas. É o que se entende por applicatio. Applicatio quer dizer que, além de interpretarmos por partes, em fatias, também não interpretamos em abstrato [3].

Continuando, a revolta metafísica seria o movimento pelo qual o homem se insurge contra a sua condição e contra a criação. Ela é metafísica porque contesta os fins do homem e da criação. Inicialmente, vira-se as costas para o criador. Depois, o ignora. Por fim, deseja também se tornar um. Ontem revoltado, hoje o homem se faz criador. O homem revoltado pós-moderno busca se tornar deus e ter sua própria criação. Ontem se falava sobre a teoria da simulação, hoje se fala sobre a teoria do prompt, especialmente após o boom de criação de narrativas multimodais, onde vídeo, áudio e enredo são inteiramente gerados por modelos como o Google Veo 3. Afinal, toda criação nega em si mesma o mundo do senhor e do escravo.

Inegavelmente, estamos na era da revolução da inteligência artificial. Isso é um fato, e não há mais como voltar atrás. A palavra revolução conserva o sentido que tem em astronomia. É um movimento que descreve um círculo completo, que a de um governo para o outro após uma translação completa. Diferente da revolta, que seria um movimento , a revolução é paradigmática: é a certeza de uma mudança de regime. Camus nos ensina, não obstante, que não devemos ignorar o custo humano de toda revolução em nome dos supostos benefícios futuros. Um meio desvirtuado não justifica um (não tão) belo fim.

Vitória de Pirro

Conforme alertado quase que semanalmente pelo professor Lenio, há um preço muito alto a se pagar pela conquista do “desenvolvimento”: a Ignorância Digital. Isso porque o uso da inteligência artificial mata o conhecimento. A sociedade está emburrecendo. A inteligência artificial proporciona um mundo de informações que encobre o conhecimento, o saber e a sabedoria. O caminho da ciência é a autodestruição. O atalho acabará com o caminho [4].

A ascensão da inteligência artificial representa uma espécie de vitória de Pirro pós-moderna: se perde, perde muito; se ganha, perde tudo. De todo modo, nós perdemos. Leonard Cohen já dizia que em uma guerra não há lugar correto para se estar. Existem algumas situações nas quais toda escolha é trágica. Como já bem alertara Lenio Streck, na batalha das inteligências artificiais, não há vencedores. É a crônica de um desastre anunciado [5].

O Poder Judiciário, utilizando-se de sua função “iluminista”, acredita que pode se dar ao luxo de atuar com ferramentas que invariavelmente irão “alucinar”. Isto para estar na “vanguarda” do “desenvolvimento”. Tudo isto em nome da “máxima eficiência”. E os falsos precedentes criados? Apenas efeito colateral. Mal uso da máquina. A solução? Fazer (ou vender) um curso, para melhor uso da inteligência artificial. O problema parece ser apenas “saber lidar”. Simples assim [6].

Camus nos ensina que a revolução sem limites significa, em última análise, servidão ilimitada. Para escapar a esse destino, o espírito revolucionário deve voltar a retemperar-se na fonte das revoltas, inspirando-se no único pensamento fiel a essas fontes, qual seja: o pensamento dos limites. Afinal, toda ação que ultraa um determinado ponto nega a si própria. Blaise Pascal já dizia que o último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultraam. O pensamento dos limites é o pensamento da humildade e da prudência.

Por fim, um dos sentidos da história atual é a luta entre artistas e os novos conquistadores, entre as testemunhas da revolução criadora e os construtores da revolução niilista, sendo nossa tarefa, no entanto, não terminar a história, mas sim criá-la à imagem daquilo que doravante sabemos ser verdadeiro. A inteligência é nossa faculdade de não levar até o fim aquilo que pensamos, para que possamos acreditar na realidade.

Em tempos de realidade virtual, precedentes criados e uma inteligência artificial que deliberadamente alucina, fiquemos com a alucinação de ar o dia a dia, sendo nosso delírio a experiência com coisas reais. Como o caso concreto.

 


[1] CAMUS, Albert. O homem revoltado. Editora Best Seller, 2017.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no C/2015.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Letramento Editora, 2018, p. 20-21.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Perdeu, mané: por que a inteligência artificial é emburrecedora. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 22 maio 2025. Disponível em: /2025-mai-22/perdeu-mane-por-que-a-inteligencia-artificial-e-emburrecedora/. o em: 5 jun. 2025.

[5]Id. A batalha das inteligências artificias em que não há vencedores. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 8 maio 2025. Disponível em: /2025-mai-08/a-batalha-das-inteligencias-artificiais-em-que-nao-ha-vencedores/. o em: 6 jun. 2025.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Inteligência Artificial: o problemas é apenas ‘saber lidar?’ Simples assim? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 1 maio 2025. Disponível em: /2025-mai-01/inteligencia-artificial-o-problema-e-apenas-saber-lidar-assim-simples/. o em: 6 jun. 2025.

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  • é advogado, sócio da Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política, doutorando em Ciências Jurídicas, membro do Dasein – Núcleo de estudos Hermenêuticos (CNPq), membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção (PUC-SP), sob liderança dos professores Pedro Estevam Alves Pinto Serrano e Luis Manuel Fonseca Pires (Faculdade de Direito da PUC-SP), membro do Grupo de Pesquisa Desafios do Controle da istração Pública Contemporânea, sob liderança do professor e desembargador federal do TRF-5 Edilson Nobre Pereira Júnior.   .

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