O tombamento voluntário de bens culturais
7 de junho de 2025, 8h00
Por força da nossa Constituição, o patrimônio cultural brasileiro, constituído por bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, deve ser objeto de promoção e proteção pelo poder público, com a colaboração da comunidade (artigo 216, caput, e § 1º).
Tal mandamento constitucional consagra o princípio da solidariedade na proteção e gestão do patrimônio cultural brasileiro, que não está entregue apenas à atividade das instituições públicas, sendo convocados todos os cidadãos para o cumprimento desse elevado dever.
Por isso, não somente os entes públicos são responsáveis pela conservação e higidez dos bens culturais existentes em nosso país, mas também cada cidadão o é, seja por meio de ações positivas, reivindicativas ou de mera abstenção.
Também ressai do referido dispositivo o princípio da participação popular na proteção do patrimônio cultural, pois a Carta Magna insere a comunidade como corresponsável pela salvaguarda dos bens culturais existentes em nosso território.
Tal princípio expressa a ideia de que, para a resolução dos problemas atinentes ao patrimônio cultural, deve ser dada especial ênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, por meio da participação comunitária individual, ou coletiva, na formulação e na execução da política de preservação dos bens culturais, envolvendo ações de seleção, proteção, preservação e promoção.
São várias as possibilidades do cidadão (de forma isolada ou através de associações) contribuir para a preservação de nosso patrimônio cultural, tais como: participação popular no processo legislativo, desde a fase de discussões até a aprovação final do projeto (audiências públicas); iniciativa popular de lei (CF/88 – artigo 61, § 2º); referendo e plebiscito; direito de petição (CF/88 – artigo 5º, XXXIV); ação popular (CF/88, artigo 5º, LXXIII) e ação civil pública (Lei 7.347/85, artigo 5º).
De tal forma, o ordenamento vigente, no que tange ao patrimônio cultural, confere aos cidadãos tanto um status activus [1], do qual decorre o poder de participar, interferir ou influenciar na formação da vontade do Estado, quanto um status civitatis, que coloca os indivíduos em posição que lhes permite exigir prestações positivas a serem adimplidas pelo Estado.

Dentro desse quadro, vale perceber que o senso comum atribui ao tombamento, o mais conhecido instrumento de proteção do patrimônio cultural brasileiro, o caráter de intervenção coercitiva na propriedade alheia, em que, por iniciativa do poder público, impõem-se limitação ao direito de propriedade em contraposição à vontade do titular do domínio, que fica colocado em uma situação de status subjectionis, marcado pela mera sujeição ou subordinação aos deveres que lhe podem ser atribuídos pelo Estado.
Iniciativa própria
Contudo, no campo do tombamento, nem sempre o proprietário da coisa estará em posição de mera sujeição, ou iva.
Com efeito, o Decreto-Lei nº 25/37, em feliz dispositivo, previu no artigo 7º o denominado tombamento voluntário, que ocorrerá “sempre que o proprietário o pedir e a coisa se revestir dos requisitos necessários para constituir parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou sempre que o mesmo proprietário anuir, por escrito, à notificação, que se lhe fizer, para a inscrição da coisa em qualquer dos Livros do Tombo”.
Assim, o tombamento voluntário pode ocorrer tanto por solicitação do proprietário, quanto por sua aquiescência à iniciativa do órgão de proteção.
O tombamento voluntário por solicitação ocorre quando o titular do domínio, civilmente capaz, por iniciativa própria, provoca o órgão oficial de proteção indicando os supostos atributos culturais da coisa de sua propriedade e requer a sua proteção pública. A partir de então, deve o órgão de proteção diligenciar, por meio de análise técnica de profissionais qualificados, a fim de verificar se a coisa, de fato, se reveste dos requisitos necessários para constituir parte integrante do patrimônio cultural, requisito essencial para a motivação do eventual tombamento.
Em hipóteses tais, o órgão istrativo competente deve ter especial atenção para com a origem da coisa e as intenções de seu dono, sobretudo quando se tratar de bens móveis. É que, não raras vezes, colecionadores de bens culturais de procedência e autenticidade duvidosas têm acionado os órgãos de proteção com o intuito de obterem o “reconhecimento oficial” acerca da legitimidade da propriedade da coisa e de seu valor, buscando segurança jurídica e vantagens econômicas no âmbito do concorrido “mercado cultural”, sem nenhum benefício para a sociedade.
Esse tipo de comportamento viola os princípios da função sociocultural e da fruição coletiva dos bens culturais, não podendo o poder público compactuar com tais atitudes.
Vale lembrar, ainda, que segundo a Portaria Iphan nº 375/2018 [2]:
“Art. 30. O Iphan deve evitar proteger, pelo instrumento do tombamento:
I. Os bens materiais que não sejam íveis de fruição cultural;
…
Parágrafo único: Por íveis de fruição cultural entende-se aqueles bens fisicamente íveis e capazes de permitir que algum grupo social os usufrua.”
Quanto ao tombamento voluntário por aquiescência, ele pode decorrer tanto da manifestação formal e expressa de concordância com a pretensão protetiva estatal, quanto pela inércia em relação à impugnação dentro do prazo legal, o que implica anuência tácita, desde que o proprietário seja civilmente capaz.
A professora Maria Coeli Simões Pires esclarece sobre o tema [3]:
“O tombamento voluntário consubstancia-se pelo concurso de vontade do proprietário e da entidade responsável pelo tombamento. Algumas vezes, o proprietário, entendendo que o seu bem se reveste das qualidades necessárias (características arquitetônicas, históricas e outras) para que possa integrar o patrimônio histórico e artístico nacional, toma a iniciativa de solicitar seu tombamento ao Instituto do Patrimônio. Este, reconhecendo aquelas características, procede ao tombamento. Outras vezes, tendo o instituto iniciado o processo, o proprietário deixa transcorrer o prazo sem impugnação. Nesse sentido, verifica-se que o tombamento voluntário de iniciativa do Poder Público se caracteriza como processo, e aquele espontaneamente solicitado pelo proprietário, como procedimento.
É assim, voluntário em ambas as vertentes, o tombamento – as vontades dos sujeitos envolvidos na relação convergem para um único objetivo: a tutela estatal do bem.”
Enfim, o tombamento voluntário é um singular e importante instrumento de proteção ao patrimônio cultural, que consagra a possibilidade do cidadão, concretamente, por iniciativa própria, dar sua contribuição à preservação dos bens culturais existentes em nosso país em atitude solidária com as futuras gerações.
[1] Segundo a Teoria dos quatro status, de Georg Jellinek.
[2] Institui a Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan e dá outras providências.
[3] PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. O tombamento como principal instituto. Belo Horizonte: Del Rey. 2022. P. 400.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!