Enfermaria nº 6, de Anton Tchekhov
8 de junho de 2025, 8h00
Talvez um psiquiatra possa compreender o sofrimento e a humilhação do paciente louco quando deixa de ser o alienista e a a ser o alienado. É esse o tema central do conto “Enfermaria nº 6”, de Anton Tchekhov (1860-1904), publicado em 1892. O autor já havia voltado de sua experiência científica na colônia penal de Sacalina (na fronteira com o Japão) e talvez o conto contenha material existencial colhido naquele horrível estabelecimento. Ao que consta, o autor hesitou muito em publicar o texto, porque em dúvida quanto à sua qualidade. Enganou-se. O conto é sublime.

O conto (que é longo, talvez seja uma novela) é ambientado em um decadente hospital psiquiátrico em lugar do interior da Rússia na segunda metade do século 19. O autor antecipa por um século aquele incompreensível e dificílimo autor francês para quem hospital e cárcere seriam duas faces de uma mesma moeda. Michel Foucault comparava hospitais e prisões por defini-los como instituições de controle social regidas pela mesma lógica disciplinar. Ambos operam como espaços fechados nos quais se exerce vigilância constante, organiza-se o tempo de forma rigorosa e se molda o comportamento dos indivíduos.
Nessa lógica, essas instituições não visariam verdadeiramente curar ou reabilitar. O objetivo é a construção de sujeitos ajustados a padrões de normalidade e utilidade, funcionando como instrumentos para a manutenção da ordem social. O filósofo francês talvez perceberia nesse conto uma antecipação de suas teorias e divagações. Não sei se Foucault leu o conto de Tchekhov. E não sei se Freud leu Nietzsche. Não dá para saber quem leu quem, embora inventários de bibliotecas possam dar pistas.
No conto, a descrição médica das várias patologias da loucura e dos internados da Enfermaria n. 6 faz da narrativa uma mistura de medicina legal com teoria psicanalítica aplicada. O autor explora temas que tocam no erro judiciário, na tirania da burocracia (uma constante em Tchekhov), na inconsistência sistêmica do Poder Judiciário (o problema é universal). Nas “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos escreveu que não há nada mais precário do que a Justiça. Enfermaria n. 6 é um texto aliciante para o selo Direito e literatura.
Tchekhov explora também o conflito entre ansiedade e premonição. Descreve um psicopata destruído (e internado) por uma inexplicável mania de perseguição, que se desdobra em uma entrega infeliz ao desespero e ao medo. A descrição desse personagem é a mais pesada (e talvez mais realista) narrativa que li sobre o tema do peso da consciência.
Nem Luísa (a mulher enganada e enganadora no “Primo Basílio”, de Eça de Queiróz) certamente sofreu tanto pelo sentimento de culpa. Luísa é a jovem da burguesia lisboeta, casada com Jorge, e que se envolve em um romance adúltero com seu primo. A relação entre os dois é central para a crítica moral e social presente na obra, expondo o vazio da vida doméstica e a hipocrisia da sociedade lisboeta do século 19. Luísa e o psicopata se equivalem, ainda que por razões distintas.
No conto, o hospital é descrito como um albergue de baratas, percevejos, camundongos e maus-tratos. Batatas eram guardadas nas banheiras. Tchekhov (que era médico) descreve a monotonia da vida de um médico do interior. Enfatiza o estoicismo na luta contra o sofrimento. Há também o questionamento da insegurança do esculápio e na tardia constatação da falta de vocação. Fascinante a literatura de médicos, e exemplifico com Pedro Nava, Guimarães Rosa, Moacir Scliar, Manuel Antônio de Almeida e o meu predileto: Dráuzio Varella.
Tchekhov questiona algumas falácias do discurso apoteótico que matiza um suposto progresso da medicina que ainda não liquidou a questão da tênue fronteira entre a demência e a saúde mental. Tchekhov, por meio dos personagens da “Enfermaria nº 6”, questiona abertamente a inflexibilidade de uma sociedade que indiscriminadamente isola criminosos e doentes mentais. Nem sei se ainda posso usar essa expressão.
Há nas entrelinhas algumas considerações sobre o abolicionismo penal e manicomial, adiantando-se a uma tensão entre teoria e realidade. O problema persiste em nossos dias.
Um inusitado diálogo filosófico entre o médico e o paciente, que se tornam amigos, e depois companheiros de quarto e reclusão, ilumina as poucas diferenças que pode haver entre loucura e razão. Do ponto de vista qualitativo, tem-se o mesmo dilema que oporia solidão e felicidade.
Tchekhov não oferece consolo, nem solução. Não propõe reformas, não sugere alternativas, tampouco emite juízos de valor. Mantém-se distante, como se narrasse de um ponto seguro, indiferente às misérias que descreve. É um observador. Um positivista. Do alto de sua neutralidade, tudo registra com precisão clínica. Descreve. Mas não julga. É um retrato cru da condição humana. Um desconcertante espelho do que somos.
“Enfermaria nº 6” é um conto trágico, que reflete a insignificância da vida. Em alguma agem do texto o autor indaga se em um milhão de anos, se um espírito ar junto ao globo terrestre, não veria, tão somente, barro e rochedos nus…
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