Fábrica de Leis

A importância (negligenciada) da participação leiga em processos regulatórios

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio doutora e mestre em Direito pela USP e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School.

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  • é procurador do estado do Rio de Janeiro pesquisador do projeto Regulação em Números e mestre em Direito pela FGV Direito Rio (instituição em que obteve o título de bacharel em Direito) mestre em Educação pela PUC-Rio bacharel em História pela UFF e autor nas áreas de Direito Educação e Políticas Públicas.

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10 de junho de 2025, 8h00

A produção de normas regulatórias costuma ser marcada por elevada complexidade técnica, econômica, científica e jurídica. Como resultado, os processos de participação social em processos regulatórios tendem a ser dominados por empresas e associações que dispõem de recursos especializados para acompanhar e influenciar a agenda regulatória. Mas seria possível — e desejável — ampliar o espaço para uma participação mais “leiga”? Em que medida contribuições baseadas na experiência pessoal de cidadãos podem agregar valor à regulação? Este artigo discute a relevância do chamado “comentário leigo” e apresenta experiências institucionais que buscaram qualificar e integrar esse tipo de contribuição nos processos regulatórios.

Cidadãos participam menos e influenciam menos na produção regulatória

Duas das questões centrais em estudos sobre participação social em procedimentos regulatórios são identificar quem são os participantes e compreender em quem medida as contribuições efetivamente influenciam as políticas regulatórias. Em outros termos, costuma-se tentar compreender: quem participa; e se a participação realmente importa.

As respostas podem variar de acordo com o país, instituição reguladora e até mesmo política regulatória analisada. Entretanto, ao menos considerando estudos sobre Estados Unidos e Brasil, é possível verificar algumas tendências. A participação de agentes econômicos, como empresas e suas associações, costuma ser maior do que a de cidadãos, como demonstram estudos quantitativos realizados no contexto norte-americano (exemplificativamente: Golden, Wagner et al, Yackee e Yackee). Estudos sobre o contexto brasileiro indicam cenário semelhante (nesse sentido: Silva, Baird e Fernandes, e Salinas). Muitos desses estudos também indicam que agentes econômicos e suas associações costumam influenciar mais, seja proporcionalmente, seja em termos absolutos, nas decisões das instituições reguladoras.

É comum que se atribua a maior participação e influência de agentes econômicos às suas características organizacionais e capacidade econômica. Grandes empresas, em geral, possuem divisões específicas voltadas para compreensão de aspectos técnicos, jurídicos e econômico-financeiros das regulações em vigor e em discussão. Também costumam manter setores voltados para relações intergovernamentais, que buscam atuar junto ao poder público com o objetivo de influenciar na produção normativa, inclusive nos procedimentos de participação social.

Por outro lado, cidadãos enfrentam dificuldades muito mais substanciais para atuar nesses procedimentos. Em artigo anterior, um dos autores deste texto apresentou algumas dessas dificuldades: o baixo engajamento, em parte atribuível à falta de motivação para participar de processos regulatórios; a dificuldade em compreender documentos técnicos e especializados que costumam ser colocados em debate; a baixa qualidade da participação, por vezes caracterizada pela simples expressão da concordância ou discordância com a proposta, sem apresentação de argumentos; e a baixa responsividade de instituições reguladoras a contribuições de cidadãos em comparação com as apresentadas por agentes econômicos e suas associações.

Ou seja: cidadãos participam pouco, ou menos do que outros atores; quando participam, em muitos casos, não compreendem completamente as propostas e documentos altamente complexos e técnicos postos em discussão; quando participam, tendem a expressar opiniões desarticuladas de subsídios técnicos, científicos e/ou jurídicos, que costumam ser valorizados por instituições reguladoras; e, por esse motivo, tendem a ver suas contribuições rejeitadas, influenciando menos nos processos regulatórios do que grandes empresas e suas associações; o que pode desestimular cidadãos a participar de novos processos regulatórios no futuro.

O ‘comentário técnico’ e o ‘comentário leigo’

Seria possível argumentar que o ciclo descrito anteriormente não apresenta, em si, problemas. Se empresas apresentam argumentos técnico e juridicamente mais robustos, faria sentido que tais argumentos sejam incorporados à regulação. Por outro lado, contribuições sem essa mesma solidez, ou que expressem apenas apoio ou contrariedade com a medida em discussão, podem ter pouco a acrescentar para o debate, de modo que faria sentido que esses argumentos não influenciassem substantivamente na regulação. Argumentos e evidências que contribuem para o debate deveriam ser valorizados. Não se deveria estimular os que não contribuem.

Spacca

Entretanto, essa linha de raciocínio tende a atribuir valor apenas a uma espécie de contribuição em processos regulatórios, ignorando que existe ao menos uma outra espécie de contribuição que pode ter grande relevância. Chamaremos a primeira espécie de “comentários técnicos”, em oposição ao que chamaremos de “comentários leigos”. E argumentaremos que ambos têm seu espaço e relevância no processo regulatório.

Os comentários técnicos podem ser definidos como contribuições que apresentam argumentos e evidências lastreados em premissas científicas, econômicas, jurídicas e outras especialidades. São construídos a partir de achados de debates acadêmicos, de sofisticados modelos estatísticos, técnicas avançadas de programação ou rigorosas análises jurídicas das melhores bancas de advocacia. São os comentários que tendem a ser mais valorizados pelas instituições reguladoras e, por isso, influenciam mais substantivamente nos atos normativos.

Os comentários leigos podem ser definidos como contribuições que apresentam argumentos e evidências lastreados em experiências pessoais, de pessoas próximas ou conhecidas do participante. Podem ser marcados por uma forte carga de apoio ou rejeição à medida em discussão. Não necessariamente vão dialogar com os parâmetros científicos ou acadêmicos típicos dos comentários técnicos. Por esses motivos, tendem a ser vistos como menos úteis para as instituições reguladoras.

Comentários técnicos e comentários leigos não se confundem com participantes empresas e cidadãos, respectivamente. É possível que um cidadão apesente um comentário altamente especializado (pensemos, por exemplo, em um engenheiro civil contribuindo em uma regulação sobre parâmetros construtivos). É possível que uma empresa apresente um comentário que relate simplesmente sua experiência sobre um tema posto em discussão. Entretanto, é esperado que agentes econômicos e suas associações apresentem comentários técnicos com muito mais frequência do que leigos, e vice-versa, no caso de cidadãos. Logo, contribuições de cidadãos, em grande medida caracterizadas como comentários leigos, tendem a ser vistas como menos relevantes por instituições reguladoras.

Contudo, comentários leigos podem ser extremamente relevantes, ao menos em alguns processos regulatórios. Esses comentários expressam situações particulares associadas ao objeto da discussão. Por exemplo, em uma discussão envolvendo a aprovação de um agrotóxico, um comentário leigo de um trabalhador diretamente exposto à substância, relatando seu cotidiano, pode ser uma contribuição valiosa para a instituição reguladora avaliar a segurança do produto. São, portanto, comentários que expressam um “conhecimento situado”, na definição de Cynthia Farina e outros, informações que o regulador provavelmente não possui e que dificilmente seriam obtidos, mesmo por meio de associações representativas dos cidadãos afetados diretamente pela regulação.

Não é esperado que comentários leigos, baseados no conhecimento situado, sejam úteis para todo e qualquer processo regulatório. Entretanto, eles podem ser contribuições valiosas ou até mesmo imprescindíveis em determinados processos, especialmente quando o ato normativo ou medida regulatória em discussão tenha a possibilidade de impactar diretamente grupos que normalmente não atuam ou sequer possuem a expertise para atuar em procedimentos participativos. Mas, nesses casos, é necessário desenhar uma arquitetura específica de participação social que consiga potencializar a atuação desses grupos.

Regulation room: como qualificar e moderar a participação leiga

Com essa preocupação em mente, a Cornell eRulemaking Initiative, sob a liderança de Cynthia Farina, desenvolveu, há alguns anos, a iniciativa Regulation Room. O projeto buscou criar um espaço em que cidadãos com conhecimento situado porém sem habilidades para se comunicar adequadamente com o regulador, pudessem aprender, discutir e fazer contribuições sobre atos normativos em processo de elaboração, particularmente em consultas públicas.

Parte da iniciativa consistia em “traduzir” as propostas de normas e documentos para uma linguagem simplificada, ível a pessoas sem conhecimento especializado. As pessoas participavam de sessões com moderadores treinados, em geral professores e estudantes da universidade para discutir as propostas de regulação, identificar possíveis dificuldades de compreensão e aprofundar a análise sobre as questões em debate. Após esse processo preparatório, os participantes do programa teriam a possibilidade de apresentar contribuições em formato e linguagem mais próximos do que costuma ser esperado pelas instituições reguladoras.

A Regulation Room foi descontinuada, em razão dos seus altos custos istrativos e operacionais. Seu legado, no entanto, permanece vivo, já que suas premissas centrais, de simplificar e democratizar a linguagem da regulação e a participação social, demonstram a relevância de pensar em procedimentos específicos para engajar grupos que possuem limitações para se comunicar com reguladores. Além disso, avanços tecnológicos recentes (e.g. disseminação de ferramentas de inteligência artificial) ampliam as possibilidades e perspectivas para novas experiências facilitadoras da participação leiga.

Um exemplo brasileiro: A ‘Perspectiva do Paciente’ na incorporação de novas tecnologias do SUS

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), criada pela Lei nº 12.401/2011, é um órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Saúde, que o auxilia na incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, bem como na constituição ou alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica. Em outros termos, é uma das instâncias responsáveis pela incorporação de medicamentos e tratamentos terapêuticos no sistema público de saúde.

Ao avaliar a incorporação de novas tecnologias ao SUS, a Conitec analisa um amplo conjunto de evidências científicas sobre a doença a ser tratada e sobre a tecnologia sob avaliação. Posteriormente, as análises produzidas são submetidas à consulta pública, procedimento mais tradicional de participação social. Antes dessa etapa, enquanto reúne evidências sobre a tecnologia em avaliação, a Conitec promove um procedimento participativo mais inovador: a Perspectiva do Paciente.

A Perspectiva do Paciente, regulamentada pela Portaria de Consolidação GM/MS nº 1, de 28 de setembro de 2017, é um procedimento em que usuários do SUS são convocados para apresentar ao Conitec suas experiências com determinada tecnologia em avaliação ou condição de saúde que a tecnologia busca tratar. Além de usuários com a condição de saúde em avaliação, podem participar cuidadores, familiares, tutores ou associações de pacientes.

A participação é aberta, por meio de chamadas públicas periódicas publicadas pelo Ministério da Saúde. O participante titular e um suplente são selecionados por sorteio realizado entre os inscritos. Na ausência de inscrições ou no caso de não haver inscrições que atendam aos requisitos, a Conitec realiza a busca ativa de potenciais participantes.

Na Perspectiva do Paciente, busca-se compreender a experiência pessoal do participante com determinada condição de saúde e sua relação com a tecnologia cuja incorporação ao SUS está sob avaliação. Por isso, o participante é questionado sobre o uso do medicamento, se foi observada melhora, impactos no dia a dia, eventuais efeitos adversos, impacto da tecnologia no orçamento familiar etc. Ou seja, o objetivo central é obter o conhecimento situado do participante, geralmente um cidadão, e não o conhecimento técnico que tipicamente é apresentado em procedimentos participativos.

Portanto, não se objetiva que o participante leve dados ou evidências científicas. Esse tipo de informação já é levantado pela Conitec na elaboração dos relatórios e avaliações. Para alinhar os participantes com a expectativa da comissão, são realizadas duas reuniões preparatórias com os participantes, em que são explicadas as funções e objetivos da Perspectiva do Paciente. Após essa preparação, a pessoa com determinada condição de saúde participa da reunião da Conitec, relatando sua experiência.

A imprescindibilidade da participação leiga na construção das políticas regulatórias

Experiências como o Regulation Room e a Perspectiva do Paciente mostram que o chamado “comentário leigo” não apenas tem espaço no processo regulatório, mas pode oferecer insumos valiosos quando devidamente considerado e incorporado. Trata-se de reconhecer que conhecimento técnico e conhecimento situado não são excludentes — são complementares. Se o primeiro contribui para o rigor e a consistência normativa, o segundo ajuda a revelar impactos concretos, percepções práticas e efeitos muitas vezes invisíveis aos olhos do regulador.

Essa constatação não significa desprezar a importância da técnica, mas ampliar o campo da escuta institucional para incluir experiências legítimas de pessoas afetadas pelas decisões regulatórias. Para que isso seja possível, não basta abrir canais formais de participação: é necessário desenhar institucionalmente esses espaços, mediá-los com cuidado e investir na tradução e na ibilidade da linguagem regulatória. Ao fazer isso, agências reguladoras não apenas fortalecem sua legitimidade democrática, mas também produzem regulações mais responsivas, informadas e justas.

O desafio, portanto, não está em decidir se a participação leiga deve ser considerada, mas em como estruturar condições institucionais e tecnológicas para que essa contribuição seja de fato possível, compreensível e eficaz.

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio, doutora e mestre em Direito pela USP e Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School. Coordenadora científica do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio.

  • é procurador do estado do Rio de Janeiro, pesquisador do projeto Regulação em Números e mestre em Direito pela FGV Direito Rio (instituição em que obteve o título de bacharel em Direito), mestre em Educação pela PUC-Rio, bacharel em História pela UFF e autor nas áreas de Direito, Educação e Políticas Públicas.

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