Lançar luz sobre o que será ajustado é deixar na sombra o que não será
10 de junho de 2025, 9h20
O conflito distributivo se acirra na realidade brasileira, tal como o indicam as tensões no Congresso em torno do imposto sobre operações financeiras (IOF) e eventuais medidas compensatórias para absorver o impacto fiscal da isenção do imposto de renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil mensais.

Logo de saída, cabe fazer o alerta de que não se configura, tecnicamente, como renúncia fiscal uma correção da tabela do imposto de renda, que beneficiasse a todos os contribuintes. É o tratamento discriminatório do Projeto de Lei 1.087/2025 (cuja tramitação está disponível aqui), que atrai o regime jurídico do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, para supostamente tentar mitigar as perdas de arrecadação que a correção plena da tabela ensejaria.
A defasagem média acumulada na falta de correção da tabela do imposto de renda ao longo da última década alcançou cerca de 155%, conforme levantamento da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco). Segundo noticiado aqui, “se implementada, a mudança teria impacto direto nos cofres do governo, já que os dados da Unafisco mostram que a arrecadação anual cairia de R$ 417,17 bilhões para R$ 146,84 bilhões — representando uma redução de R$ 270,33 bilhões. […]
A última vez que a tabela do Imposto de Renda ou por uma correção significativa foi em 2015, e especialistas apontam que a defasagem acumulada ao longo dos anos penaliza especialmente os trabalhadores de renda média e baixa.”
Enquanto os trabalhadores tributados pelo imposto de renda têm sofrido uma tributação injusta pela falta de correção monetária adequada da tabela do imposto de renda, as renúncias fiscais alcançaram a casa de R$800 bilhões apenas no nível da União, segundo o Ministério da Fazenda.
Afinal, como diagnosticara o ministro Fernando Haddad: “ao invés de oferecer uma alíquota média de tributos menor para todo mundo, a gente resolve escolher os campeões nacionais que levam o grosso do Orçamento. Aquele que paga imposto fica prejudicado por aquele que fez do lobby a sua profissão de fé”.
As contradições têm sido empilhadas umas sobre as outras, em meio à disputa do que é alvo de ajuste fiscal para fins de contenção/restrição de custeio, bem como de quem paga, ou não, a conta da vida em sociedade.
Novos ajustes têm sido aventados. Quiçá haja mais uma rodada de novas alterações na Constituição em matéria fiscal. Vale lembrar que a Emenda Constitucional 135, de 20 de dezembro de 2024, foi a mais recente reforma para fazer a Constituição “caber” no orçamento, subordinando-a à Lei Complementar 200/2023 e, potencialmente por isso, rebaixando sua normatividade. Em última instância, o que esteve em pauta não era — única e tão somente — a alegada sobrevivência do “Novo Arcabouço Fiscal”, mas, sobretudo, a definição do que é prioridade alocativa do Estado.
Não deixa de ser, no mínimo, contraditório ver, por exemplo, retrocessos propostos na dimensão equitativa do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). A complementação federal ao Fundeb se quer estacionar no patamar de 21%, negando a expansão projetada até 23% a partir de 2026, como consta do artigo 60 do ADCT, em consonância com o artigo 212-A, inciso V da CF1988.
Tal retrocesso se dá apenas quatro anos após haver sido aprovada a Emenda do “Fundeb Permanente” (Emenda 108/2020), a partir de uma pauta de ajuste fiscal conduzida pelo ex-ministro da Educação que implementou a transição do Fundef para o Fundeb.
É irônico também que se volte a sugerir a desindexação dos benefícios assistenciais e previdenciários em relação ao comportamento do salário mínimo (no âmbito do BPC e RGPS), o qual se propõe seja congelado por até seis anos. Enquanto isso, tem sido ignorada a necessidade de uma revisão estrutural sobre o “Sistema de Proteção Social” dos Militares, bem como se posterga indefinidamente o controle da vigência indeterminada e da falta de exame das contrapartidas em relação às renúncias fiscais.
Noutro giro, ainda se revelou bastante tímido, aliás, o esforço empreendido pelos artigos 6-A e 6-B da Lei Complementar nº 211, de 30 de dezembro de 2024 de, nas hipóteses de apuração de déficit primário do governo central ou de verificação de que as despesas discricionárias totais tenham redução nominal, na comparação do realizado no exercício anterior com o imediatamente anterior, vedar, no exercício subsequente ao da apuração, e até a constatação de superávit primário anual:
I – a promulgação de lei que conceda, amplie ou prorrogue incentivo ou benefício de natureza tributária; e
II – até 2030, no projeto de lei orçamentária anual e na lei orçamentária anual, a programação de crescimento anual real do montante da despesa de pessoal e de encargos com pessoal de cada um dos Poderes ou órgãos autônomos acima do índice inferior de que trata o § 1º do artigo 5º da lei do Novo Arcabouço Fiscal, excluídos os montantes concedidos por força de sentença judicial.
No seu primeiro ano de mandato, o governo federal perdeu a oportunidade de rever a meta de inflação via Conselho Monetário Nacional (CMN), o que foi alertado por diversos economistas em carta aberta disponível aqui. Assim como deixou de rever o Decreto 3088/1999 para aprimorar o sistema de metas de inflação e estabelecer, mais claramente, um devido processo da política monetária, como já suscitamos nesta coluna Contas à Vista. Em ambos os casos, eram atos privativos do Executivo, sem necessidade de negociação com o Congresso. Havia legitimidade política e espaço decisório em relação ao mercado no início do governo.
Mas por querer ser mais realista que o rei, o governo propôs meta de resultado primário de déficit zero em 2024 e superavit em 2025, além de haver mantido a meta irrealista de inflação em 3%, a um custo socioeconômico considerável. Quando o governo alterou a meta de resultado primário para o próximo ano no PLDO-2025, em abril de 2024, o mercado financeiro e, em especial, o presidente do Banco Central, começaram a precificar, em reuniões fechadas (algo proibido por ato infralegal do BC apenas a partir de agosto de 2024), um precipício fiscal e inflacionário.
De maio de 2024 ano em diante (logo após o envio do PLDO-2025), o BC inverteu o seu forward guindance e começou a aumentar os juros. Desde então, a exigência dos analistas do mercado financeiro, subsidiada pelo BC, era a necessidade de concluir a agenda alcunhada de “DDD fiscal”, proposta pelo governo anterior no âmbito da PEC 188/2019, de desvinculação/ desobrigação/ desindexação das proteções constitucionais que amparam o custeio dos direitos fundamentais.
Como o governo, imerso em contradições, não entregou, no ajuste anunciado em 27/11/2024, a conclusão dessa tríade DDD, contratada desde o arranjo do NAF, o mercado financeiro e o BC partiram para uma postura ainda mais conflituosa, donde se depreende a pressão cambial e, em especial, a escalada da taxa básica de juros até alcançar o patamar de 14,75%, o maior em duas décadas.
A escolha pelo acirramento do conflito distributivo no orçamento público é cada vez mais evidente… É preciso reiterar que nenhuma medida foi enviada ao Congresso para, de fato, rever o “Sistema de Proteção Social” dos militares, a despeito do seu anúncio. Seguem intocadas a regressiva isenção sobre distribuição de dividendos, a baixa tributação sobre heranças e a controversa figura dos juros sobre capital próprio, tanto quanto pouco se avançou nas iniquidades remuneratórias internas ao serviço público.
Distorções se acumulam, em igual medida, na dinâmica dos duodécimos dos poderes e órgãos autônomos e pagamentos acima do teto remuneratório a que se refere o artigo 37, XI da CF/1988. A esse respeito, José Roberto Afonso e eu debatemos o quanto o sistema de freios e contrapesos desbalanceado agrava o desequilíbrio das contas públicas no nosso país.
Infelizmente, mais uma vez, o ajuste fiscal tende a recair, primordial e rapidamente, sobre os mais vulneráveis. As escolhas sobre a intensidade e a velocidade do ajuste fiscal, bem como sobre a fixação da taxa básica de juros não são neutras em termos político-distributivos. Afinal, a desigualdade é uma escolha orçamentária, na medida em que o Estado é, direta ou indiretamente, o grande árbitro de perdedores e ganhadores na vida em sociedade e nas relações com o mercado.
O que é alvo de ajuste traz consigo uma ordenação de prioridades, que encerra uma espécie de acomodação histórica da desigualdade, já que tem sido recorrentemente adiada a implementação planejada e progressiva da força civilizatória da nossa Constituição Cidadã…
Ideias alternativas de ajuste fiscal lançar luzes sobre o que ficou na penumbra
Para desvendar o que ainda não foi ajustado e aplacar um pouco os vieses regressivos da agenda de ajustes fiscais apenas incidentes sobre despesas primárias que amparam direitos sociais, seguem algumas sugestões de agendas alternativas de revisão do ordenamento das finanças públicas brasileiras, para torná-las, tanto quanto possível, mais equitativas e aderentes ao pacto constitucional civilizatório de 1988:
1) Alteração da meta de inflação pelo Conselho Monetário Nacional, mitigando os desarrazoados impactos na dívida pública e os custos socioeconômicos da pretensão de trazê-la para patamar significativamente abaixo da média histórica;
2) Revisão da meta de resultado primário no Anexo de Metas Fiscais no âmbito do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2026, suavizando a necessidade de contenção da ação governamental em meio, por exemplo, à existência de mais de 300 mil pessoas em situação de rua no Brasil, segundo o censo realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): aqui;
3) Aprimoramento da metodologia de elaboração do Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias da União, para que ali também haja análise do impacto das despesas financeiras decorrentes das políticas monetária, cambial e creditícia na dívida pública, como Victor Carvalho Pinto, Leandro Maciel do Nascimento e eu propusemos aqui;
4) Revisão do Decreto 3088/1999, para internalizar a noção de devido processo da política monetária e para que seja resguardado o efetivo cumprimento de todos os objetivos legais inscritos na LC 179/2021, até porque não são neutras a velocidade e a intensidade da fixação da taxa básica de juros. Vale lembrar, em especial, que a dívida pública brasileira absorveu, nos últimos doze meses findos em 30/05/2025, conforme o relatório de Estatísticas Fiscais do Banco Central , o significativo montante de R$928,4 bilhões em juros nominais do setor público consolidado;
5) Impugnação das renúncias fiscais, tanto das que foram criadas/ ampliadas desde a EC 95/2016, ao arrepio do artigo 113 do ADCT, quanto das que foram concedidas por prazo indeterminado após o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, por serem ilícitos à luz do artigo 14 da LC 101/2000;
6) Revogação da iníqua isenção de imposto de renda sobre a distribuição de dividendos e revisão da figura dos juros sobre capital próprio;
7) Reforma do “Sistema de Proteção Social dos Militares” para reduzir o seu elevado déficit per capita, quando comparado aos congêneres RGPS e RPPS;
8) Revisão da estrutura dos duodécimos dos poderes e órgãos autônomos para evitar insulamentos orçamentários, que, direta ou indiretamente, acabam por permitir estruturas remuneratórias alheias ao regime dado pelo artigo 37, XI da CF/1988;
9) Rediscussão da regressiva tributação sobre o patrimônio, que não alcança adequadamente latifúndios, jatinhos, iates, helicópteros, lanchas, jet-skis etc; bem como da tributação sobre a herança, cujas alíquotas máximas são sensivelmente inferiores às praticadas pelos países desenvolvidos;
10) Quantificação do tamanho necessário do Estado brasileiro, sem filas de espera e sem ivos judicializados, a partir do elenco de despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento da LDO e dos programas de duração continuada do PPA; para fins de controle de conformidade da expansão das despesas discricionárias e de novas estratégias de inibição da arrecadação tributária.
O rol acima não é exaustivo, tampouco se propõe a ser uma milagrosa e rápida guinada copernicana. A bem da verdade, sua formulação é esforço sisífico de disputa de ideias. Apresentar alternativas envolve uma complexa, mas necessária agenda minimamente coerente com a promessa emancipatória que ousamos pactuar como nosso contrato constitucional.
É apenas uma tentativa de pautar alternativas de ajuste fiscal íntegras e mais consentâneas com o ordenamento brasileiro. Afinal, como bem alertara dr. Ulysses Guimarães, quando da promulgação da nossa Constituição Cidadã: “o inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria”.
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