Biocombustíveis versus combustíveis comuns na reforma tributária
10 de junho de 2025, 16h21
A aprovação da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, seguida pela Lei Complementar nº 214/2025, inaugurou um novo capítulo na história tributária brasileira. O brasileiro e o mundo acompanharam essa reforma que, sem dúvida, representa um marco para a sociedade como um todo, pois a tributação ará por uma mudança substancial.
Às pessoas que não estão habituadas à linguagem jurídica cabe uma breve contextualização. A reforma tributária, considerando o fato de que no Brasil existe um sistema hierárquico de normas jurídicas, primeiro precisou ar por uma mudança na Constituição, o que significa dizer que houve a aprovação de uma emenda constitucional.
A partir de agora, a norma constitucional precisará de regulamentação por meio da legislação complementar, mas ela também já possui ampla aplicabilidade em termos de alguns conceitos gerais e até mesmo considerando o conteúdo de algumas de suas normas.
O novo sistema tributário do consumo apresenta mudanças nucleares, entre as quais destacamos: a extinção gradativa do PIS, Cofins, ICMS e ISSQN e a redução gradativa do IPI; a criação do IS, da CBS e do IBS; a não composição das bases de cálculo dos novos tributos; a tributação no destino, em regra; e a inauguração do conceito de competência tributária compartilhada.
Regime específico para combustíveis e biocombustíveis
A par dessas mudanças nucleares, há uma norma que muito nos intrigou e que impactará diretamente o setor de transporte e, por consequência, todos os setores que dele dependem.
Trata-se do regime específico para combustíveis e biocombustíveis, previsto no inciso I do § 6º do artigo 156-A da Constituição, inserido pela EC 132/23, que reservou à lei complementar a função de dispor sobre regimes específicos de tributação para “combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez qualquer seja a sua finalidade”.
A mera leitura do dispositivo constitucional revela os três aspectos distintivos do regime diferenciado de IBS e CBS aplicáveis a combustíveis. São eles: a incidência monofásica; a aplicação de alíquota uniforme em todo o território nacional, específica por unidade de medida e diferenciada por produto; e certas particularidades no creditamento.
No exercício da função delimitada pelo dispositivo constitucional, a LC 214/25 dedicou o Capítulo I do Título V (Dos Regimes Específicos do IBS e da CBS) à tributação dos combustíveis. Conforme o art. 172 da LC 214/25, o IBS e a CBS incidem uma única vez sobre as operações, ainda que iniciadas no exterior, com gasolina, etanol anidro combustível (EAC), óleo diesel, biodiesel (B100), gás liquefeito de petróleo (GLP), etanol hidratado combustível (EHC), querosene de aviação, óleo combustível, gás natural processado, biometano, gás natural veicular (GNV) e outros combustíveis especificados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
A tributação monofásica para os combustíveis não é novidade da reforma tributária. Ela já existia para o ICMS (desde a Emenda Constitucional 33/2001 e instituída pela Lei Complementar 192/2022) e para a Contribuição ao PIS e a Cofins. Ainda assim, houve importantes modificações com relação à tributação anterior, com destaque para a ampliação das espécies de combustíveis incluídos no regime monofásico.
Dilema tributário no setor de transporte
Aqui reside o ponto central de nossa análise: a reforma tributária estabeleceu um tratamento diferenciado para os biocombustíveis em relação aos combustíveis de origem fóssil. Os biocombustíveis terão alíquotas reduzidas de IBS e da CBS em comparação com combustíveis fósseis, com o objetivo de incentivar o uso de combustíveis com menor impacto ambiental.

Essa diferenciação, embora louvável do ponto de vista ambiental, cria uma verdadeira incógnita tributária para o setor de transporte e para os tomadores de serviços de transporte. Explico.
No tocante aos combustíveis, é necessário distinguir ao menos dois cenários: o primeiro, atinente à produção e comercialização do próprio combustível; e o segundo, atinente à utilização do combustível como insumo para a produção de outros bens ou prestação de serviços.
Relativamente ao primeiro cenário, a LC 214/25, em seu artigo 180, veda a apropriação de créditos em relação às aquisições de combustíveis sujeitos à incidência do IBS e da CBS quando destinadas à distribuição, à comercialização ou à revenda. O racional que ilumina essa vedação é um só: como no regime monofásico a tributação ocorre integralmente no início da cadeia econômica, nas saídas subsequentes do produto não há débito a pagar. É dizer: como não há débito a pagar, também não há direito ao acúmulo de créditos.
Relativamente ao segundo cenário, a LC 214/25 assegura a não cumulatividade de forma ampla e irrestrita. Conforme o § 1º do artigo 180 da LC 214/25, “excetuadas as hipóteses previstas no caput deste artigo [aquisição de combustível sujeito à incidência única do IBS e da CBS destinado à distribuição, comercialização ou revenda], o contribuinte no regime regular poderá apropriar créditos do IBS e da CBS em relação à aquisição de combustíveis, nos termos do § 4º do art. 47 desta Lei Complementar”.
Isso quer dizer que, se o combustível for adquirido para o exercício da atividade empresarial do contribuinte, terá ele direito ao crédito. Esse é o caso, por exemplo, de uma transportadora que adquire combustível para abastecer a frota de veículos utilizados na sua atividade. Justamente porque o combustível não é adquirido para ser posteriormente distribuído, comercializado ou revendido, a transportadora tem direito ao crédito correspondente ao IBS e à CBS pagos na fase inicial da cadeia.
O mesmo racional vale para a indústria que compra combustível para utilizar como insumo em sua produção. A tomada de crédito, contudo, é vedada se o combustível for adquirido para uso pessoal.
Em suma, nos termos da LC 214/25, a incidência de IBS e CBS sobre o combustível que “orbita a cadeia” (transporte, frete, armazenamento, insumos, etc.) assegura o direito ao crédito. Entendimento diverso criaria um custo adicional a ser reado ao consumidor final, em nítida contradição com a finalidade perseguida pela reforma tributária — garantir a tributação somente do valor agregado.
Questão crucial: qual a frota contratar?
Eis que surge o dilema tributário para os tomadores de serviços de transporte: qual frota será mais vantajosa contratar? Aquela movida a combustíveis comuns ou aquela movida a biocombustíveis?

Por um lado, os biocombustíveis terão alíquotas reduzidas de IBS e CBS, o que, em tese, reduziria o custo operacional das transportadoras que optarem por esse tipo de combustível. Por outro lado, essa mesma redução de alíquota implica em menor crédito tributário para as empresas que contratam esses serviços de transporte.
Vejamos um exemplo hipotético para ilustrar esse problema complexo:
Suponhamos que a alíquota combinada de IBS e CBS para combustíveis fósseis seja de 28%, enquanto para biocombustíveis seja de apenas 11,2% (40% da alíquota padrão, conforme estabelecido no § 1º do artigo 175 da Lei Complementar 214/2025, que determina que “as alíquotas do IBS e da CBS relativas aos biocombustíveis e ao hidrogênio de baixa emissão de carbono não poderão ser inferiores a 40% e não poderão exceder a 90% das alíquotas incidentes sobre os respectivos combustíveis fósseis comparados”).
Uma transportadora que utiliza combustíveis fósseis terá um custo tributário maior, mas gerará créditos maiores para seus clientes. Já uma transportadora que utiliza biocombustíveis terá um custo tributário menor, mas gerará créditos menores para seus clientes.
Para o tomador de serviços de transporte, a decisão sobre qual frota contratar dependerá de sua capacidade de aproveitar os créditos tributários. Empresas com grande volume de operações e eficiente gestão tributária poderão preferir contratar transportadoras que utilizam combustíveis fósseis, pois o maior crédito tributário compensaria o potencial aumento no preço do serviço. Já empresas com menor capacidade de aproveitamento de créditos poderão preferir transportadoras que utilizam biocombustíveis, priorizando o menor preço imediato do serviço.
Esse cenário cria uma verdadeira equação de difícil solução para o mercado, pois a decisão não será simples nem estática. Fatores como o preço dos combustíveis, a eficiência energética dos veículos, a capacidade de aproveitamento de créditos e até mesmo questões ambientais e de marketing entrarão na equação.
Impactos práticos no setor de transporte
O setor de transporte, que já enfrenta desafios significativos no Brasil, terá que se adaptar a essa nova realidade. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), 65% das cargas no Brasil são transportadas por caminhões, e o Ministério do Transporte indica que 75% das mercadorias que chegam até nós am pelas estradas.
Com a reforma tributária, estima-se que o custo do frete pode subir até 10%, impactando diretamente o preço final dos produtos para o consumidor. Além disso, a alíquota do IVA (combinação de IBS e CBS) para o transporte de cargas deve subir para cerca de 28%, enquanto hoje a carga tributária combinada (PIS e Cofins) é de 19,5%.
Para as empresas de transporte, o desafio será igualmente complexo. Por um lado, a utilização de biocombustíveis pode reduzir a carga tributária imediata, mas também reduz o valor dos créditos oferecidos aos clientes, potencialmente tornando seus serviços menos atrativos para empresas que priorizam o aproveitamento de créditos. Por outro lado, a utilização de combustíveis fósseis mantém a atratividade em termos de créditos, mas aumenta os custos operacionais imediatos.
Esse cenário pode levar a uma segmentação do mercado, com algumas empresas de transporte se especializando em atender clientes que priorizam o aproveitamento de créditos, enquanto outras se voltam para clientes que priorizam o menor preço imediato do serviço.
Benefícios e desafios do novo regime
Apesar dos desafios e complexidades, o novo regime tributário para combustíveis traz benefícios importantes. A simplificação do cálculo do tributo, com alíquotas uniformes em todo o território nacional e específicas por unidade de medida, facilita enormemente a gestão tributária. Além disso, a garantia da não cumulatividade plena para o uso empresarial do combustível elimina distorções que existiam no sistema anterior.
A reforma também endereça problemas específicos do setor, como a complexidade na distribuição da receita do ICMS para os biocombustíveis, que atualmente é dividida entre o estado de origem e o estado de destino. Com o IBS e a CBS, a arrecadação será integralmente direcionada para o estado de destino (consumo), simplificando os rees e diminuindo litígios relacionados à bitributação nessa distribuição.
Outra melhoria é a possibilidade de as empresas tomarem crédito pelo ISS pago em serviços adquiridos, o que não ocorre amplamente no sistema atual e que impacta a carga tributária.
A reforma, ao promover maior transparência sobre a carga tributária (com a alíquota ad rem clara por unidade), e ao garantir a não cumulatividade plena, tem o potencial de melhorar o ambiente de negócios, aumentar a segurança jurídica e promover uma competitividade mais justa.
Mistério tributário persiste
A reforma tributária, embora necessária e com potenciais benefícios para a economia brasileira como um todo, cria um verdadeiro quebra-cabeça para o setor de transporte e para os tomadores de serviços de transporte. A diferenciação de alíquotas entre biocombustíveis e combustíveis fósseis, embora louvável do ponto de vista ambiental, gera um dilema complexo que exigirá análises constantes e decisões estratégicas por parte das empresas.
Não há uma resposta única ou definitiva sobre qual opção será mais vantajosa: frotas com combustíveis comuns ou biocombustíveis. A decisão dependerá de múltiplos fatores, incluindo o volume de operações, o perfil do tomador, a capacidade de aproveitamento de créditos e até mesmo questões ambientais e de marketing.
O mercado deverá ar por um período de adaptação e experimentação até encontrar o equilíbrio. Empresas precisarão desenvolver análises técnicas constantes para otimizar suas decisões, e é provável que surjam consultorias especializadas em auxiliar nesse processo.
O que é certo é que a reforma tributária provocará uma readequação intensa no setor de transporte e nos setores que dele dependem. E nesse novo cenário, a compreensão profunda das nuances tributárias será um diferencial competitivo fundamental.
O desafio está posto. Caberá a cada empresa, seja transportadora ou tomadora de serviços de transporte, solucioná-lo de acordo com suas particularidades e necessidades específicas. E, como em todo bom problema complexo, a resposta não está na superfície, mas na análise detalhada e na compreensão profunda das regras do jogo.
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