Fintech & Crypto

A reviravolta do mercado cripto nos EUA

Autor

  • é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

    Ver todos os posts

11 de junho de 2025, 11h23

Nos Estados Unidos, a chegada de Donald Trump à presidência marcou uma virada surpreendente na forma como o governo lida com criptoativos. Após anos de embates regulatórios e insegurança jurídica sob a istração Biden, o novo governo adota uma postura declaradamente favorável à inovação digital.

Este texto examina como decisões executivas, mudanças na SEC e a proibição de uma moeda digital estatal reposicionam o país no debate global sobre ativos digitais — e traz lições importantes para juristas e reguladores brasileiros atentos aos rumos da política tecnológica e financeira internacional.

Ordens executivas e mudanças na SEC

Rompendo com a postura cautelosa da era anterior, o novo governo sinalizou, já na primeira semana, seu apoio ao setor com a emissão da Ordem Executiva “Fortalecendo a Liderança Americana em Tecnologia Financeira Digital”. O documento estabelece como prioridade o incentivo ao uso responsável de ativos digitais e da tecnologia blockchain, em contraste direto com a estratégia adotada pela istração Biden, frequentemente criticada pela indústria por promover insegurança regulatória e por priorizar ações de fiscalização.

A abordagem do governo Biden foi pautada pelo alerta constante aos riscos associados aos criptoativos, com destaque para os pronunciamentos do então presidente da SEC, Gary Gensler, sobre a necessidade de trazer o setor para dentro do perímetro regulatório. Já a ordem executiva emitida por Trump representa uma mudança radical tanto na retórica quanto na substância da política pública, ao colocar a inovação como eixo central da atuação estatal.

A nova orientação inclui uma reestruturação profunda na SEC. Sob nova liderança, foi criada a Força-Tarefa “Crypto 2.0”, liderada pela comissária Hester Peirce. A missão declarada do grupo é desenvolver um arcabouço regulatório claro e abrangente, capaz de responder às críticas recorrentes sobre a falta de previsibilidade nas decisões da agência sob Gensler.

Hester Peirce, conhecida por suas dissidências internas e apelidada de “Crypto Mom”, é uma voz crítica da prática de regular por meio da aplicação da lei. Sua liderança à frente da nova força-tarefa sinaliza uma mudança relevante na filosofia regulatória da SEC.

Encerramento de grandes ações de enforcement

A mudança de postura da SEC tornou-se concreta com a reversão de algumas de suas ações de fiscalização mais emblemáticas. Um dos casos mais simbólicos foi o processo contra a Ripple Labs, iniciado ainda no fim da primeira gestão de Trump. Após anos de litígio, a SEC e a empresa chegaram a um acordo que reduziu a multa civil de US$ 125 milhões para US$ 50 milhões. A SEC reconheceu, ainda, que as vendas de XRP em mercados secundários não configuram oferta de valores mobiliários sob a legislação vigente, estabelecendo um precedente importante. As vendas institucionais, no entanto, seguirão exigindo divulgações adicionais, e a Ripple deverá manter padrões elevados de transparência por um período de cinco anos.

Spacca

Outro caso de grande repercussão encerrado envolveu a Coinbase. A SEC havia acusado a empresa de operar como bolsa, corretora e agente de compensação sem os devidos registros. Em fevereiro de 2025, a Comissão decidiu arquivar o processo e a Coinbase não foi multada e poderá manter seu modelo de negócios e os ativos listados, em um desfecho amplamente interpretado como uma vitória para a indústria.

No caso da Binance, a maior exchange global de criptoativos, a SEC também recuou. O processo civil, que alegava operação irregular de plataformas e oferta não registrada de valores mobiliários como o BNB, foi encerrado por meio de uma estipulação conjunta com a empresa e seu fundador, Changpeng Zhao. A medida é distinta do acordo firmado em 2023 com o Departamento de Justiça, que resultou em multas de US$4,32 bilhões e na prisão de Zhao por violação das normas de combate à lavagem de dinheiro e sanções internacionais.

Proibição de CBDCs de dólar e estímulo às stablecoins privadas

Outra medida relevante da nova istração foi a proibição da criação de uma Moeda Digital de Banco Central – Central Bank Digital Currency (CBDC) – emitida pelo Federal Reserve. Por meio de ordem executiva, Trump vetou formalmente a iniciativa, alegando riscos à estabilidade financeira, à privacidade dos cidadãos e à soberania nacional. Por outro lado, declarou apoio à expansão global das stablecoins privadas lastreadas em dólar, desde que operem dentro da legalidade.

Esse movimento vem acompanhado de propostas legislativas em andamento no Congresso para estabelecer um regime federal para as stablecoins. No Senado, o “Guiding and Establishing National Innovation for U.S. Stablecoins Act of 2025” (Genius Act) prevê a possibilidade de emissores com menos de US$10 bilhões em circulação optarem pela regulação estadual, desde que esta seja substancialmente semelhante à federal. Já a Câmara discute o “Stablecoin Transparency and ability for a Better Ledger Economy Act of 2025” (Stable Act), que exige que os regimes estaduais cumpram ou superem os padrões federais.

O cenário também é favorável às empresas do setor. A Tether, emissora do USDT, anunciou um lucro líquido recorde de US$ 13 bilhões em 2024, com US$ 6 bilhões apenas no quarto trimestre, impulsionados principalmente por rendimentos de títulos do Tesouro americano. O patrimônio líquido do grupo ultraou os US$ 20 bilhões.

A Circle, emissora do USDC, realizou uma abertura de capital de sucesso na Bolsa de Nova York. Suas ações valorizaram 167% no primeiro dia de negociação. A empresa levantou US$ 1,05 bilhão, com uma avaliação total próxima de US$ 8,1 bilhões. Os resultados do primeiro trimestre indicaram um lucro de US$64,8 milhões sobre receita de US$ 578,6 milhões, também impulsionados por juros sobre reservas.

Esses números reforçam a tese de que as stablecoins, além de oferecerem utilidade para o ecossistema cripto, representam um modelo de negócios altamente rentável – similar a fundos do mercado monetário, porém com vantagens tecnológicas próprias.

Trump e cripto: um caso de amor?

Donald Trump também participou diretamente do mercado de ativos digitais. Seus NFTs — os Trump Digital Trading Cards, nas versões Série 1 e Série 2 — foram lançados na blockchain Polygon e movimentaram juntos mais de US$ 65 milhões até janeiro de 2025. Após o entusiasmo inicial, os volumes caíram, mas o interesse permanece alto entre apoiadores políticos.

Mais controversa foi a memecoin $TRUMP, lançada na blockchain Solana três dias antes da posse. A moeda atingiu valor de mercado superior a US$ 27 bilhões em um único dia, com a maior parte dos tokens sob controle de empresas ligadas à família Trump. A SEC declarou que memecoins como essa não são valores mobiliários, mas o episódio gerou forte debate: mais de 800 mil carteiras amargaram perdas de US$2 bilhões, enquanto os desenvolvedores e aliados de Trump lucraram cerca de US$ 100 milhões em taxas. Segundo a Chainalysis, 58 carteiras individuais obtiveram ganhos acima de US$ 10 milhões.

Melania Trump também entrou no setor com sua própria memecoin, $MELANIA, lançada por sua empresa MKT World LLC em janeiro de 2025. A moeda chegou a uma capitalização de US$ 1,7 bilhão. Houve dúvidas sobre o uso de informação privilegiada, já que carteiras compraram grandes quantidades do token pouco antes do anúncio público e lucraram quase US$ 100 milhões. O episódio levantou questionamentos éticos e pode gerar investigações mais amplas.

Apesar da retórica favorável à inovação, o envolvimento direto da família Trump com ativos altamente especulativos e politicamente carregados pode gerar reações adversas. A percepção de conflito de interesses ou manipulação pode abrir caminho para legislação mais rigorosa, mesmo sob uma istração que se declara pró-cripto.

Conclusões

A istração Biden, por meio da SEC de Gary Gensler, adotou uma abordagem dura, marcada por fiscalização intensa e ausência de diretrizes claras. O resultado foi um ambiente regulatório incerto, que muitos consideram responsável por frear a inovação no setor.

A nova postura do governo Trump reverte esse cenário. Com foco em clareza regulatória, incentivo à indústria e redução de barreiras, a atual istração é vista como mais alinhada aos interesses do mercado. O encerramento de casos emblemáticos e o estímulo às stablecoins reforçam esse movimento.

No entanto, a aposta em stablecoins privadas no lugar de uma CBDC exige cuidados. Sem um marco regulatório robusto, há riscos de instabilidade financeira e prejuízo ao investidor-consumidor. Episódios envolvendo meme coins associadas a políticos podem afetar a reputação de todo o ecossistema, alimentando narrativas de que o setor é dominado por fraudes e esquemas oportunistas.

Mesmo assim, o momento é considerado promissor. A perspectiva de regras mais claras e ambiente favorável cria espaço para inovação e crescimento. A responsabilidade agora recai sobre a indústria, que precisará demonstrar maturidade, ética e compromisso com a proteção do investidor-consumidor para preservar esse novo ciclo.

Fique à vontade para enviar comentários e críticas nas minhas redes sociais. Obrigado pela leitura!

Autores

  • é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!