Opinião

Desjudicialização forçada da posse: da busca e apreensão extrajudicial prevista na Lei 14.711

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  • é advogado especializado em Direito Bancário coordenador jurídico negocial no escritório Reis Advogados pós-graduado em Direito Digital e Compliance membro efetivo da Comissão de Direito Bancário e da Comissão Especial de Resoluções Consensuais de Conflitos da OAB-SP.

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12 de junho de 2025, 16h25

No bojo da Lei nº 14.711/2023 — o chamado Marco Legal das Garantias — foi inserida uma previsão alarmante: a possibilidade de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis alienados fiduciariamente, mediante simples requerimento ao cartório e, em alguns casos, com execução praticada diretamente por empresas privadas. O discurso de inovação e desburocratização pode soar sedutor, mas esconde um profundo desrespeito a pilares constitucionais do Estado democrático de Direito.

Para tirarmos logo de frente, importante ressaltar, não se trata aqui de negar a importância da segurança jurídica nos contratos, nem a necessidade de eficiência na satisfação do crédito. Mas é precisamente por reconhecer a centralidade desses valores que devemos nos preocupar com o rumo que tal legislação inaugura. Ao permitir que credores, cartórios e entes privados pratiquem atos de retomada forçada de posse, sem qualquer chancela judicial, a lei desrespeita garantias como a reserva de jurisdição, a inafastabilidade da tutela jurisdicional, o devido processo legal e até mesmo a inviolabilidade do domicílio (CF, artigo 5º, incisos XI, XXXV, LIV e LIII).

Como ponto de partida, convém lembrar o contexto em que surgiu o Decreto-Lei nº 911/1969. Criado em pleno regime militar, foi concebido, em grosso resumo, como instrumento de celeridade para o credor fiduciário — notadamente nas operações de financiamento de veículos. Ao longo do tempo, ou por adaptações importantes, sempre buscando alinhamento ao texto constitucional, como a vedação da prisão civil do devedor fiduciário, após o julgamento do HC 87.585/SP, que resultou na Súmula Vinculante nº 25¹.

Contudo, mais recente alteração, promovida pela Lei 14.711/23, representa não uma evolução, mas um retrocesso institucional. Ao criar a figura da busca e apreensão sem ordem judicial, delega-se a entes privados — como empresas de cobrança e cartórios — a prática de atos que restringem a posse e a propriedade do cidadão. No limite, ite-se que particulares ingressem em domicílios para remover bens, baseando-se apenas em certidões cartorárias².

Isso choca-se diretamente com a doutrina e a jurisprudência constitucional. O STF já decidiu que a busca e apreensão sem ordem judicial viola a inviolabilidade do lar (ADI 1.668/DF)³, e que a indisponibilidade de bens só pode ocorrer com autorização judicial (ADI 5.886/DF)⁴. No julgamento do RE 860.631/SP, a corte também deixou claro que a desocupação forçada, mesmo após a consolidação da propriedade, demanda intervenção judicial⁵.

Além de ferir a reserva de jurisdição, a medida compromete o próprio direito de defesa do devedor. A desjudicialização da execução, tal como posta, exclui o contraditório e a ampla defesa — garantias indissociáveis do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV e LIII). E mais: como a execução é feita fora do Judiciário, sem a necessidade de citação pessoal, o devedor pode sequer ter ciência da medida, sendo surpreendido com a retirada do bem.

Spacca

Tal modelo institucionaliza uma forma de autotutela mascarada. E isso não é aceitável em um Estado de Direito. O artigo 345 do Código Penal tipifica como crime o ato de fazer justiça com as próprias mãos. O Código Civil, no artigo 188, I, só ite a autotutela em casos excepcionais de legítima defesa de direitos — o que certamente não abrange a retomada patrimonial em massa por bancos e financeiras⁶. Nas palavras de Karl Larenz, a exigibilidade coercitiva de obrigações deve ser mediada por um sistema institucional e imparcial⁷.

Inconstitucionalidade material

Outro aspecto negligenciado é o da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade (CF, artigo 1º, III). O veículo financiado pode ser instrumento de trabalho; o bem apreendido pode representar a única forma de subsistência do devedor. Permitir que sua retirada ocorra sem controle judicial é tratar o inadimplente como um obstáculo, e não como sujeito de direitos. Como afirmou a ministra Cármen Lúcia na ADI 2.649, “a dignidade é o valor que unifica os direitos fundamentais”⁸.

A nova legislação ainda colide com os direitos à intimidade, ao sigilo de dados e à inviolabilidade da correspondência (CF, artigo 5º, X, XI, XII, LXXIX). O artigo 8º-C, §4º do Decreto-Lei 911/69, com redação atualizada, permite que o credor, por si ou por terceiros, realize diligências para localizar o bem. Ou seja, o legislador autorizou, com respaldo formal, o monitoramento do devedor por empresas privadas, inclusive com uso de dados pessoais. Tal previsão afronta frontalmente a jurisprudência da ADI 6.387, relatoria da ministra Rosa Weber, que consagrou o direito à autodeterminação informacional⁹.

É ilusório acreditar que tal desjudicialização trará, por si só, maior efetividade à execução. Ao contrário: a ausência de filtros institucionais amplia os riscos de abuso e pode gerar uma nova leva de judicializações, agora para contestar apreensões arbitrárias. Como alerta Fredie Didier, a execução não é mera técnica de cobrança — é ato de império, que demanda limites e garantias¹⁰.

Por fim, vale destacar a exclusão da figura do advogado nos procedimentos extrajudiciais. Ao retirar a possibilidade de defesa técnica, a nova lei enfraquece ainda mais o equilíbrio entre as partes e ignora o artigo 133 da CF, que estabelece a indispensabilidade da advocacia na istração da justiça. A ausência do contraditório e do defensor técnico é mais uma marca do desequilíbrio da norma.

Diante de tudo isso, é legítimo concluir que os dispositivos da Lei 14.711/2023 que permitem a busca e apreensão extrajudicial são materialmente inconstitucionais. O Supremo Tribunal Federal já analisa o tema em sede de controle concentrado, nas ADIs 7.600, 7.601 e 7.608. Espera-se que a corte reafirme seu papel garantista e impeça a consolidação de um modelo que, embora travestido de modernidade, retoma práticas autoritárias e privatistas de execução¹¹.

O crédito é vital à economia, mas nunca pode ser satisfeito à revelia da Constituição. Que a eficiência jamais suplante a legalidade — sob pena de substituirmos o Estado democrático pelo império da força privada.

 


Notas

1. STF, HC 87.585/SP, Rel. Min. Carlos Britto.

2. Lei 14.711/23, art. 8º-B e art. 8º-C, §4º.

3. STF, ADI 1.668/DF.

4. STF, ADI 5.886/DF.

5. STF, RE 860.631/SP (Tema 982).

6. , art. 345; CC, art. 188, I.

7. LARENZ, Karl. Obligationenrecht. 2. Auflage. München: Beck, 1987.

8. STF, ADI 2649, voto da Min. Cármen Lúcia.

9. STF, ADI 6387, Rel. Min. Rosa Weber.

10. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1. Salvador: JusPodivm, 2023.

11. STF, ADI 7.600, ADI 7.601, ADI 7.608.

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  • é advogado especializado em Direito Bancário, coordenador no escritório Reis Advogados, pós-graduado em Direito Digital e Compliance e membro efetivo da Comissão de Direito Bancário e da Comissão Especial de Resoluções Consensuais de Conflitos da OAB-SP.

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