Fiscalização tributária no pós-reforma: presunções legais e estrutura do regime especial
12 de junho de 2025, 7h05
A Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 214/2025 instituíram um novo modelo de tributação sobre o consumo no Brasil. Trata-se de uma inovação que vem acompanhada de impactos significativos não apenas sobre a sistemática de apuração, mas também sobre os mecanismos de fiscalização e controle.
Entre as disposições de destaque, o artigo 335 da LC nº 214/2025 introduz diversas presunções legais de omissão de receita e ocorrência de fato gerador do IBS e da CBS. Essas presunções, embora relativas (juris tantum), buscam fortalecer o uso das técnicas presuntivas, colocando à disposição das autoridades fazendárias ferramentas para exigir o IBS/CBS em situações de difícil ou impossível alcance. A norma prevê que, em situações de inconsistência ou ausência de documentação, presume-se a ocorrência da operação tributável com base em indícios objetivos extraídos das movimentações de entrada e saída de bens, prestações de serviços ou incompatibilidades patrimoniais.
A técnica da presunção não é inédita no ordenamento jurídico brasileiro; a legislação federal e as legislações estaduais já estabelecem mecanismos similares. A inovação, objeto de reflexão neste texto, decorre do fato de o artigo 335 estabelecer, de forma sistematizada e vinculada à apuração dos novos tributos, um conjunto de hipóteses presuntivas que balizarão a atuação fiscal. Trata-se de novo paradigma na fiscalização tributária, com impacto direto na dinâmica da prova e no compliance das empresas.
A evolução digital dos fiscos, combinada com o o amplo a bases de dados públicas e privadas, poderá tornar a aplicação das presunções quase que mecânicas, potencializando a lavratura de autos de infração com base em padrões detectáveis por parâmetros. Esse cenário exigirá dos contribuintes um cuidado ainda mais rigoroso, em tempo real, com integração absoluta entre contabilidade, faturamento e deveres instrumentais.
Veja-se, por exemplo, a hipótese contida no inciso IV, que estabelece a possibilidade de se presumir, pela falta de pagamentos escriturados, que houve operações sujeitas ao IBS/CBS que não foram oferecidas à tributação. Trata-se de um indício que pode ser representativo de alguma irregularidade, mas que, se isoladamente considerado para sustentar uma autuação, pode gerar graves distorções.
Regime especial de fiscalização
O novo modelo carrega riscos, sendo importante relembrar por que existem as presunções. Os mecanismos presuntivos devem, sempre, ser utilizados como uma hipótese residual e exclusivamente nos casos em que não é possível, pela via fiscalizatória comum, alcançar os fatos omitidos das autoridades fazendárias, o que sugere que seu uso deve ser ponderado, razoável e sempre oportunizando a dialética com o contribuinte. A atuação do fisco não pode dispensar a fundamentação individualizada, sob pena de transformar a fiscalização em mero automatismo sancionatório, incompatível com o devido processo legal substantivo.

Nesse contexto, também é digno de nota o Regime Especial de Fiscalização (REF), previsto pelo artigo 338 e seguintes. Lá, consta uma hipótese de “ajuste de conformidade”, permitindo ao contribuinte regularizar inconsistências antes da lavratura do auto de infração, com vantagens na redução de penalidades. Trata-se de um mecanismo que valoriza a autorregularização e tende a reduzir o contencioso.
O REF pode ser instaurado diante da constatação de inconsistências relevantes ou inadimplência reiterada, estabelecendo um regime de vigilância diferenciada. O regime pode acarretar restrições operacionais severas, como bloqueios em sistemas eletrônicos de apuração, monitoramento prévio de operações e limitação do direito a compensações tributárias, mesmo antes da constituição definitiva do crédito tributário.
A implementação do REF, ainda que justificada como medida vocacionada à proteção do interesse público, seguramente enseja preocupações legítimas. A imposição de restrições prévias, com efeitos econômicos imediatos, antes do exaurimento da discussão istrativa, tensiona princípios constitucionais como a ampla defesa, o contraditório e o livre exercício da atividade econômica. Na prática, o REF poderá funcionar como um instrumento de constrição indireta, impondo ao contribuinte ônus desproporcionais para forçá-lo à regularização ou à adesão a programas de transação.
Note-se que o artigo 339, ao prever que o ajuste de conformidade — regularização espontânea de inconsistências — pode encerrar o procedimento de fiscalização e evitar a imposição do REF, cria um incentivo relevante à autorregularização. Em certas situações, contudo, essa possibilidade poderá ser percebida como instrumento de pressão, especialmente se não forem assegurados transparência, critérios objetivos e adequada comunicação com o contribuinte.
Aliado a tudo isso, os fiscos federal, estaduais e municipais executarão o REF de maneira compartilhada (artigo 340). É um novo patamar de integração entre os fiscos, o que deve exigir uma atuação coordenada e coesa, exigindo um alto padrão de procedimentos e governança institucional. Sem esses cuidados, haverá sérios riscos de sobreposição de atuações, conflitos de competência e insegurança jurídica. Que fique claro: é importante que o Fisco disponha de ferramentas para combater a sonegação.
Mecanismos de integração e controle são bem-vindos para o bom funcionamento da arrecadação e para a convivência do Fisco com os contribuintes. O que se está a advertir é que o uso das presunções legais de maneira cômoda e irrefletida, aliado ao forte poder dos instrumentos previstos na reforma tributária dos quais dispõe o Fisco, reduz a dialeticidade do contribuinte, podendo-lhe gerar situações graves.
A regulamentação e o uso com temperança serão determinantes para o sucesso desse novo instrumento que tem o potencial de racionalizar a fiscalização e promover a eficiência. É fundamental, porém, que se estabeleçam balizas claras e controles adequados para que o REF não se torne um mecanismo de constrição econômica incompatível com o Estado democrático de Direito.
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