Lei que proíbe crianças na Parada LGBTQIAPN+ é inconstitucional
12 de junho de 2025, 19h37
A Aliança Nacional LGBTI+ e a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (Abrafh) moveram a ADI 7.584 contra a Lei Estadual 6.469/23 do Estado do Amazonas que, basicamente, proibiu a participação de crianças e adolescentes nos desfiles relacionados à Parada do Orgulho LGBTQIAPN+, exceto com autorização judicial, cominando multa istrativa de R$ 10 mil por hora de efetiva “exposição” da criança ou adolescente e estabelecendo a responsabilidade solidária entre os realizadores dos eventos, patrocinadores e dos pais e responsáveis pela garantia da ausência de crianças e adolescentes nos eventos. [1]
Distribuída a ação ao relator ministro Gilmar Mendes, este adotou o rito abreviado do artigo 12 da Lei 9.868/99. Vale mencionar que a referida ação se encontra pautada para julgamento no plenário virtual no período de 13 de junho a 24 de junho de 2025. [2]
A Procuradoria-Geral da República ofertou seu parecer e é sobre ele que este texto irá se debruçar. Nesse ato processual, a PGR alega que as requerentes indicaram como parâmetro de controle concentrado o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos, dos Princípios de Yogyarkata, da Opinião Consultiva 24/17 que, no entanto, não poderiam ser considerados parâmetros adequados sem que fossem recepcionados pelo procedimento previsto no artigo 5º, §3º da Constituição, para além da arguição de inconstitucionalidade formal em decorrência da ofensa à competência concorrente estabelecida no artigo 24, inciso XV da Constituição. [3]
Controle de constitucionalidade
O argumento da contrariedade do texto legislativo com normas internacionais foi manejado pelas requerentes em conjunto a outros blocos de constitucionalidade indicados como parâmetro. O PGR em sua manifestação expande (no sentido schopenhaueriano [4]), para além do sentido argumentativo articulado pelas requerentes, a indicação dos instrumentos internacionais como parâmetro de constitucionalidade.
É importante destacar a inversão lógica feita no parecer da PGR: enquanto as requerentes indicam a violação de tratados internacionais pela lei estadual como último argumento, o PGR “elege” o controle de convencionalidade como fundamento primário de toda ação, abordando os primeiros fundamentos sem o mesmo “rigor técnico”. O parecer sugere à percepção do leitor que a ação é inviável por uma questão de ordem técnica e o que nela consta além do que se alegou ser “parâmetro de controle inadequado” são questões de somenos importância.
De toda forma, mesmo se considerássemos correto o argumento do PGR, que a ação indica parâmetro inadequado para fins de controle de constitucionalidade, isso em nada reduz a importância dos atos internacionais como fundamento de mérito para a análise da Corte. Toma-se por exemplo o HC 171118/SP, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, assentando que o exercício do controle de convencionalidade, tendo por paradigmas normativas internacionais, que a legislação nacional (Código Penal) “deve ser lido em conformidade com os preceitos convencionais e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos” […] [5].
Proteção de infância e juventude

Na consideração da PGR, o poder público teria o dever constitucional de zelar pela proteção integral da infância e juventude. Desse modo, entende viável a possibilidade de limitar a participação de menores em performances públicas, levando em consideração o desenvolvimento psicossocial das crianças e adolescentes, conforme a Portaria 502/2021 do Ministério da Justiça. Embora reconhecendo que nas paradas do orgulho LGBTQIAPN+ não se tem contato com violência ou drogas, aliado ao fato de que se trata de reivindicação legítima por parte de setores minoritários da sociedade, a PGR entende ser constitucional a lei supracitada do Estado do Amazonas, já que a questão não seria resolvida pela proibição constitucional da censura.
De forma absolutamente equivocada, o parecer da PGR sustenta que se trata de evento destinado ao adulto, com conteúdo e abordagem que, de acordo com os atos normativos do Ministério da Justiça, poderia ser contraindicado para crianças e adolescentes. Assim, o parecer entende que, de acordo com o Guia Prático de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, “situações sexuais complexas”, “erotização” e cenas de exposição de partes do corpo humano e sua representação imagética seriam contraindicados para menores de 14 anos.
No entendimento da PGR, se as diretrizes do Ministério da Justiça apartam os menores e adolescentes de filmes e publicações, com ainda mais razão se justificaria esse apartamento no contato direto, pessoal e ao vivo com conteúdos adultos. Ou seja, é feita uma interpretação extensiva de restrição de direitos, o que, de cara, já é criticável.
Amadurecimento psicossocial
Em uma breve síntese, o parecer da PGR conclui que a participação de menores nas paradas LGBTQIAPN+, cercada por adultos que veiculam mensagens sobre orientação sexual/identidade de gênero, depende de mais amadurecimento psicossocial do menor, razão pela qual a intervenção do Estado se revela uma operação legítima de acomodação de interesses que foi deixada a cargo do legislador.

O parecer é sustentado por uma visão enviesada e equivocada das paradas LGBTQIAPN+. Ao que parece, a PGR parece endossar uma determinada imagem que é propagada por setores conservadores como forma de tentar deslegitimar as lutas político-sociais das minorias sexuais e de gênero: a de que as paradas do Orgulho LGBTQIAPN+ veiculam cenas de sexo explícito nas ruas. No fundo, o parecer reforça estereótipos que marginalizam as minorias sexuais e de gênero, qual seja, o de que suas manifestações e eventos são voltados à “hipersexualização” e/ou erotização.
A legislação questionada e o parecer da PGR “supõem” existir uma situação de sexo nas paradas e querem, então, proibir que crianças estejam presentes. Não há, contudo, base em quaisquer dados/denúncias que possam sustentar um e outro. Apenas reforço de discriminação institucional. [6]
Em sentido diverso ao que supõe o PGR, não se presume a prática de ato ilícito. Não se presume que em um evento de reivindicação por respeito, reconhecimento e direitos fundamentais básicos, estejam incluídos “elementos de sensualidade ou erotismo”, tampouco que “sensualidade e erotismo” sejam necessários “para induzir uma assimilação pela sociedade das práticas e vivências recriminadas”. Mesmo diante inúmeros casos de brigas entre torcidas de futebol, não se presume a violência física ou simbólica nos estádios de futebol.
Classificação indicativa
A equiparação ou mesmo a utilização da analogia com a classificação indicativa dos filmes e publicações para proibir que crianças e adolescentes participem de eventos públicos é, antes de qualquer coisa, absolutamente equivocada porque aproxima eventos e fenômenos absolutamente distintos.
Em primeiro lugar, a classificação exercida é meramente indicativa de eventos de diversão e de programas de rádio e televisão. Nesse caso, trata-se de fenômeno ligado às atividades de lazer, cultura, esporte e entretenimento que estão relacionadas ao âmbito do bem-estar social de crianças e adolescentes e as classificações de eventos se prestam à prevenção como mecanismo de proteção integral às crianças e adolescentes. Naturalmente, espetáculos e diversões não podem ser, de forma alguma, equiparados ao exercício do direito de reunião em locais públicos que reivindica legitimamente, em um Estado democrático de direito, o exercício de direitos fundamentais.
Manifestação de minorias
Embora as paradas do Orgulho LGBTQIAPN+ sejam também um evento, elas são, antes de tudo, exercício de direito de reunião e manifestação de minorias que reivindicam legitimamente o exercício de direitos fundamentais. Dito de outro, o parecer da PGR erra também ao pretender reduzir as paradas do Orgulho LGBTQIAPN+ a eventos de entretenimento e lazer quando, na verdade, têm um sentido político-social muito mais profundo: constituem reivindicações para o exercício de direitos fundamentais na luta contra os números que colocam o Brasil, seguidamente, como o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+, ao mesmo tempo em que o Congresso Nacional se mantém inerte e, nesses mais de 35 anos da Constituição, foi incapaz de aprovar, sequer, uma lei diretamente ligada à promoção de direitos de cidadania daqueles.
Ocorre, entretanto, que não há esse suposto conflito de interesses, desde que se analise e se interprete a constitucionalidade da lei sob o ângulo da dimensão e do conteúdo do exercício de direitos fundamentais. As paradas do orgulho são, antes de mais nada, exercício legítimo do direito de reunião e manifestação que buscam denunciar e revelar as discriminações e violações de direitos de uma ampla parcela da sociedade. Tal exercício de direito, em hipótese alguma, pode ser etiquetado como prática de atos “libertinos”, sob pena de esvaziar o próprio conteúdo do direito fundamental.
Pior ainda a referência à proibição de crianças na Marcha da Maconha para dizer que o caso deveria ter “solução análoga”. Onde está a premissa fática comum entre a Parada do orgulho e a Marcha da Maconha para que se possa aplicar a mesma premissa de direito? A resposta fica apenas no subtexto do parecer.
Direito fundamental à manifestação
Ora, sabe-se que o direito fundamental à reunião e manifestação são meios e instrumentos exercidos pela cidadania para o gozo e ampliação de outros direitos fundamentais. Nesse caso, a proibição da participação de crianças e adolescentes acaba por restringir os próprios direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Não podemos esquecer, jamais, que o dever de proteção integral às crianças e adolescentes por parte do Estado e da sociedade civil implica na efetivação dos seus próprios direitos fundamentais. Em outras palavras, a proibição da participação de crianças e adolescentes, a pretexto de defender os seus interesses, acaba por interferir em sua esfera de liberdade e restringir seus direitos fundamentais.
Nessa medida, a lei do Estado do Amazonas ofende o direito à liberdade de locomoção das crianças e adolescentes, sobretudo em espaços públicos e abertos a todos, na forma do artigo 16, inciso I do ECA. Viola, também, liberdade de manifestação e de opinião (artigo 16, inciso II do ECA), já que tal evento é nada mais do que o exercício desse direito por parte da população LGBTQIAPN+ e de todos quanto apoiem a causa. E, no limite, viola também o direito de crianças e adolescentes na participação da vida comunitária e política. [7]
Assim como a legislação de entes federativos não pode proibir a educação sexual nas escolas por se tratar de competência da União quando à diretrizes e bases da educação, tal como definido na ADPF 457, relator ministro Alexandre de Moraes, j. 27/04/2020, não pode também proibir a participação de crianças acompanhadas e adolescentes nas paradas. É que, neste caso, a lei invade a competência legislativa da União, seja a exclusiva ou a competência para estabelecer normas gerais em caráter concorrente com os estados.
Competência da União
Em primeiro, a lei estadual invade a competência exclusiva da União para legislar sobre direito civil, porque restringe o poder familiar dos pais/mães/responsáveis legais em relação aos filhos e filhas, ofendendo o artigo 22, inciso I da Constituição. Em segundo, a lei também ofende a competência da União em estabelecer normas gerais no que concerne ao direito das crianças e adolescentes, conforme artigo 24, inciso XV e §1º da Constituição. Aqui, há de se aplicar a mesma lógica de inconstitucionalidade formal que orientou o STF na declaração de inconstitucionalidade de leis estaduais e municipais que buscavam proibir a educação sexual e de gênero nas escolas. Dentre muitos casos, ver a ADI 5537, relator ministro Roberto Barroso, j. 24/08/2020.
E, em especial, a lei atacada veicula uma ideologia homotransfóbica ao procurar, acima de tudo, discriminar ainda mais os filhos, filhas e dependentes dos pais e mães pertencentes à minoria LGBTQIAPN+, na medida que impossibilita que pais e mães possam participar e se manifestar, já que não poderão levar as suas crianças e adolescentes no dia do evento. Em outros termos, se os pais e responsáveis que quiserem participar o que farão com as crianças e adolescentes? Serão obrigados a ficar em qual lugar? Dependendo de quem?
Nem é preciso recorrer à normatividade internacional para se perceber que a lei em questão, para além da inconstitucionalidade formal por ofensa à competência da União, incide em grave inconstitucionalidade material por se constituir uma afronta à igualdade, à diversidade, ao direito fundamental de reunião e manifestação, à proteção integral das crianças e adolescentes, à liberdade individual e política das crianças e adolescentes.
É tempo para que o STF enfrente esse tema e o mérito para se julgar inconstitucional leis que, a pretexto de proteção das crianças e adolescentes, pretendem ser uma afronta aos direitos fundamentais de parcela significativa da população brasileira. A construção do Estado democrático de direito a necessariamente pela reafirmação dos compromissos constitucionais pela promoção da igualdade e do combate à discriminação.
[1] A íntegra do texto legislativo pode ser consultada aqui
[3] A respeito da questão inicial apresentada pela PGR, de que as normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos teriam que ar primeiramente pelo procedimento do §3º do art. 5º da CR/88, para que, só então, pudessem ser balizas para o controle de constitucionalidade, esquece-se o Procurador-Geral da República que, já há muitos anos, existe o controle de convencionalidade, que deve ser feito por qualquer juiz, em qualquer processo, de forma difusa, mas também pelo STF na forma direta. Isso decorre de mandamento exposto no Pacto de San José da Costa Rica (de que o Brasil é signatário desde 1992) que estabelece que os países que o em têm de adequar/manter suas normas em conformidade com aquele. Assim, mesmo que o autor da ação não tivesse se fundamentado também na Constituição, caberia ao STF o dever do controle de convencionalidade, no caso.
[4] Falácia argumentativa em que se expande a afirmação para além de seus limites (Estratagema n°1). In: SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de ter Razão. Trad. Franco Volpi, SP: Martins Fontes, 2001.
[6] O reforço da discriminação fica evidenciada quanto ao fato de que há dados que mostram que a maioria absoluta dos casos de abusos contra crianças e adolescentes é cometida por familiares ou amigos próximos dos menores, e nem por isso se propõe em tese separá-los de seus familiares.
[7] Em sentido absolutamente semelhante, ver sobre o Projeto de Lei do Município de Betim: BACHA E SILVA, Diogo, BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Projeto de Lei 229/2023 do Município de Betim: um atentado contra as famílias, as crianças e os adolescentes. Emporio do Direito, 20 de julho de 2023. Disponível aqui
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