Perigo de retrocesso em nome da inclusão: do projeto de um novo código brasileiro
12 de junho de 2025, 15h23
A tramitação do projeto de lei que propõe a instituição de um denominado Código Brasileiro de Inclusão da Pessoa com Deficiência (CBI), hoje identificado como PL 2.661/25, tem gerado justificada apreensão das pessoas com deficiência.

Embora a proposta se apresente sob o argumento da simplificação legislativa e da racionalização normativa, uma análise jurídica aprofundada, aliada à escuta atenta dos movimentos sociais e das próprias pessoas com deficiência, revela que o projeto representa um risco concreto e iminente de retrocesso, podendo desarticular conquistas históricas e fragilizar direitos duramente alcançados.
Frise-se desde logo: tal projeto, que se pretende (apesar do nome de código) ser uma consolidação, tecnicamente assim não pode ser entendido, uma vez que traz inovações e, portanto, inevitavelmente ará pela articulação do Congresso e, logicamente, dos lobistas de plantão.
Lei Brasileira de Inclusão (LBI): marco civilizatório a ser preservado e celebrado
Para compreender a gravidade do projeto, é fundamental contextualizar o marco legal existente no Brasil. Nosso país possui uma das legislações mais avançadas do mundo no campo dos direitos da pessoa com deficiência. A partir da Constituição de 1988 e da incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com equivalência de norma constitucional em nosso país, surge um pilar fundamental para dar operacionalidade aos direitos das pessoas com deficiência, que é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), Lei nº 13.146/2015.
Então, em 2025, a LBI completa uma década de existência e deveria ser comemorada como um marco civilizatório da cidadania plena e da igualdade de direitos, ao invés de ser colocada sob ataque, em risco de revogação (ainda que se diga, levianamente, que a revogação seria formal).
A Lei Brasileira de Inclusão não é uma mera compilação de normas: ela é a expressão normativa que dá possibilidade de concretizar direitos e princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada, como já dito, em nosso ordenamento jurídico com valor de emenda constitucional, nos termos do artigo 5º, § 3º, da Constituição. Essa equivalência constitucional confere à convenção e, por tabela, à LBI, um caráter de supremacia e de diretriz interpretativa inquestionável para todas as políticas e legislações que afetam as pessoas com deficiência.

A construção da LBI foi um processo de anos que contou com a participação democrática das próprias pessoas com deficiência: foram realizados 1.168 encontros com movimentos populares e inúmeras audiências públicas no Senado, com a participação ativa do Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência (Conade). Esse processo reflete o compromisso do Brasil com o lema mundial dos movimentos sociais de pessoas com deficiência: “Nada sobre nós sem nós!”, lema esse que fora inserido como norma da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em seu artigo 4.
Voz da sociedade civil: alerta na audiência pública de 6/5/2025
A preocupação com o PL 1.584/2025 (sua primeira versão) ecoou de forma contundente na audiência pública na Câmara dos Deputados, no dia 6 de maio de 2025. A grande maioria das instituições presentes expressaram suas preocupações, pleiteando o arquivamento do PL, uma vez que os riscos de tramitação desse projeto eram enormes. As falas da Rede In, da Ampid e de tantas outras (que podem ser vistas aqui ou aqui) são exemplos da preocupação justificada se tal projeto continuar tramitando. Naquela ocasião, a Autistas Brasil expressou sua preocupação e reforçou o alerta dos movimentos sociais.
Representada na oportunidade por sua vice-presidente, Juliana Izar Soares da Fonseca Segalla, a Autistas Brasil enfatizou que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com sua equivalência de norma constitucional, deve ser a bússola de qualquer ação, legislação e interpretação. Reiterou, ainda, que a participação dos interessados — as próprias pessoas com deficiência — em qualquer ação ou legislação que lhes afete é uma exigência constitucional inegociável, ressaltando que o PL 1.584 não respeitou essa premissa.
Lembrou-se, também, que direitos são conquistados (e não concedidos como favor), sendo “fruto de muita luta, suor, lágrimas e às vezes até sangue de quem guerreou por eles”. Portanto, revogar a LBI seria uma afronta à história de grandes mulheres e homens com deficiência (e seus familiares) que lutaram muito para conquistar direitos que hoje colocam o Brasil na posição de um dos países com legislação mais avançada do mundo no que tange aos direitos das pessoas com deficiência.
Contrariando o argumento de que o PL visa simplificar termos e atualizar expressões, pontou-se que a LBI já utiliza uma linguagem atualizada e alinhada à convenção e aos direitos humanos.
Ficou evidente o perigo de retrocesso: um processo legislativo é complexo e envolve “muitas cabeças” e vozes parlamentares. Mesmo que seja boa a intenção dos autores, “a partir do momento que o projeto de lei entra em processo legislativo, ainda que não haja intenção de restringir direitos, abre-se espaço para discussão de seus termos, o que pode abrir brechas para todo tipo de mudança e retrocessos, bem como o enfraquecimento do modelo social da deficiência ou a relativização de garantias já consolidadas na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), conquistados a duras penas no ado”.
Desse modo, é fato que a revogação da LBI (ainda que formal) traria insegurança jurídica a todos os envolvidos (inclusive aos aplicadores do Direito!).
A fala da Autistas Brasil culminou com a veemente afirmação: “Nós, pessoas com deficiência, não ‘voltaremos ao armário’, não seremos mais invisíveis! Somos potências! Não se brinca com a vida das pessoas desse jeito! … Nada sobre nós sem nós!“. Este brado resume a essência da resistência contra o projeto do código.
Fragilidades jurídicas e inconstitucionalidades do e de sua reedição
Muitas são os pontos problemáticos do Projeto 1.584/2025. Oportuno, dessa maneira, pontuarmos, a título de exemplo, alguns aqui:
- Não é consolidação, pois traz inovações legais e inconstitucionalidades: O PL 1.584/2025 não se limita a consolidar normas; ele traz inovações legais, gerando atecnias e inconstitucionalidades. Exemplos como os artigos 45 e 18 do PL são apontados como contrários à Convenção da ONU. O projeto altera conteúdos, insere novas redações e dando oportunidade para reinterpretação direitos já garantidos, representando sério risco de retrocessos, exclusão e insegurança jurídica.
- Enfraquecimento do modelo biopsicossocial: O modelo biopsicossocial, consagrado pela LBI como paradigma oficial para o reconhecimento da deficiência, é tratado de forma superficial no PL, delegando sua regulamentação a atos infralegais. O PL dá espaço ao modelo médico da deficiência e teses eugenistas que violam os direitos humanos das pessoas com deficiência.
- Fragilização da governança democrática e do controle social: O projeto ignora o papel fundamental dos conselhos de direitos da pessoa com deficiência (Conade e congêneres estaduais/municipais) no processo de formulação, monitoramento e avaliação das políticas públicas, comprometendo os princípios da gestão democrática e da participação cidadã.
- Vício de origem e ausência de participação social: A ausência de participação social na construção do projeto constitui um “vício de origem inaceitável”. A proposta foi elaborada sem o devido diálogo com o segmento diretamente afetado, contrariando a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência acerca do princípio ‘Nada sobre nós sem nós'”. Essa exclusão, obviamente, compromete a legitimidade e a representatividade de qualquer iniciativa voltada às pessoas com deficiência.
Jus enrolandi: deputado Duarte Júnior ‘disse, mas não disse!’
Na audiência pública de 6 de maio de 2025, embora o deputado venha dizendo em mídia que cada instituição falou pelo tempo que quis, isso não é verdade e a gravação não deixa dúvidas: principalmente às falas contrárias ao PL eram interrompidas (a exemplo da vez da Autistas Brasil, em que o deputado insistia que daria apenas dois minutos de fala, enquanto as poucas posições favoráveis ao projeto puderam falar sem pressa alguma).
No término da audiência, embora alertado mais de uma vez sobre não haver razão para um projeto como esse, que traria tantos riscos e não acrescentaria nenhum direito, o deputado Duarte Júnior enfatizou que ouviu tudo que fora dito e era para que todos desconsiderassem o texto do PL anteriormente conhecido, pois ele iria apresentar um novo escrito, levando em consideração tudo quanto fora levantado na audiência, dentro de 15 dias.
Ora… disse que iria desconsiderar, mas não disse que iria arquivar o PL, que era o que os movimentos sociais de pessoas com deficiência pleiteva!
A audiência, que também servira como show (de horror) de autoelogios e de tentativa de invocação de “argumentos bíblicos” (o deputado várias vezes invocava a questão religiosa, ao invés da técnica jurídica), foi frustrante, cansativa e deixou as instituições participantes em alerta, uma vez que não foi aceito o arquivamento e, utilizando o “jus enrolandi” próprio da atuação político-partidária, o presidente da Comissão fez que ouviu… (e se realmente ouviu, não compreendeu ou não levou em consideração).
Em 20 de maio de 2025 foi iniciado o novo Grupo de Trabalho da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, presidida pelo deputado Duarte Júnior mas, diferente do que foi prometido, nem as instituições e nem mesmo a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência ou o Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência) foram chamados a contribuir.
A repercussão negativa do projeto ensejou o arquivamento dele a pedido do próprio relator. Sob requerimento à Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, presidida por ele mesmo, o PL 1.584/25 foi arquivado. Mas, como defunto que retorna a falar, o texto fora reeditado no que hoje é o PL 2.661/25, que mantem o mesmo espírito, e em muito até as mesmas palavras.
Sem dúvida, tudo isso é muito preocupante! Não há razão para um Código/Consolidação, como ficou evidente. Além de conquista histórica e linguagem atualizada, a Lei Brasileira de Inclusão é reconhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Assim, não há motivos para trazer insegurança jurídica aos aplicadores do direito (seja o Judiciário, seja o Ministério Público, as Defensorias e Advogados), que agora estão um tanto familiarizados com a LBI, nem para os sujeitos desses direitos.
É inegável que o Projeto de Lei nº 2.661/2025, a despeito de suas intenções declaradas (e das não declaradas), representava um perigo concreto de retrocesso para os direitos das pessoas com deficiência no Brasil. Sua tramitação apressada, sem a devida escuta qualificada dos movimentos sociais e das próprias pessoas com deficiência, afronta o princípio da participação e os direitos humanos. Os direitos conquistados são fruto de muita luta e não podem ser desmantelados sob o pretexto de uma suposta “consolidação”.
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