Opinião

O mito de Pandora e a crise do sistema tributário brasileiro

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13 de junho de 2025, 19h31

Mito de Pandora e a crise do sistema tributário

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O mito de Pandora oferece uma lente privilegiada para compreender a trajetória do sistema tributário brasileiro. Prometido como simples, justo e racional, o modelo constitucional de 1988 carregava em si a promessa de um financiamento estatal eficiente, distributivamente equitativo e operacionalmente transparente. Essa promessa, simbolicamente depositada na “jarra” entregue pelos constituintes à jovem república, guardava tanto a esperança quanto os riscos inerentes a qualquer sistema complexo.

A abertura prematura dessa jarra, movida pela urgência política e pela ilusão de controle absoluto sobre a complexidade tributária, liberou males que hoje assolam o sistema: hipertrofia normativa, guerra fiscal, bitributação, insegurança jurídica e regressividade disfarçada. Esses males não emergiram simultaneamente, mas se espalharam como névoa densa, obscurecendo a clareza que deveria caracterizar o dever fiscal.

Todos os atores do sistema foram afetados: fisco, contribuintes e julgadores operam em um ambiente que simultaneamente exige obediência e nega previsibilidade. No fundo da jarra, como no mito original, resta apenas a esperança — esperança que muitos depositam na Emenda Constitucional nº 132/2023 e sua promessa de reforma estrutural.

Contudo, a esperança é ambígua: pode ser alento transformador ou adiamento perpétuo. É nessa ambiguidade que reside o desafio contemporâneo: se a potestas (poder constituinte e legislativo) tem a capacidade de abrir a jarra da reforma, é da auctoritas (autoridade técnica, hermenêutica e prudencial) que depende a contenção dos males e a orientação virtuosa do novo sistema.

Reafirmação principiológica e seus paradoxos

A Emenda Constitucional nº 132/2023 introduziu no artigo 145, § 3º, da Constituição Federal um catálogo principiológico aparentemente inovador:

“O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.”

Essa inovação, entretanto, revela-se mais retórica que substancial. Os princípios da simplicidade, transparência e justiça tributária já integravam o sistema constitucional desde 1988, não como lacunas a serem preenchidas, mas como fundamentos implícitos do próprio Estado Democrático de Direito.

A teoria constitucional contemporânea não estabelece hierarquia ontológica entre princípios expressos e implícitos. Ambos possuem idêntica força normativa e integram o bloco de constitucionalidade com igual exigibilidade. A diferença reside na evidência textual, não na eficácia jurídica. Essa equivalência sugere que a explicitação principiológica de 2023 não inaugura um novo paradigma, mas reafirma compromissos já assumidos.

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Por que, então, explicitar o que já estava implícito? A resposta encontra-se na dimensão política do gesto: diante da crise sistêmica, o constituinte reformador busca reconectar a legislação com sua base axiológica. Trata-se de um movimento de autodiagnóstico institucional que reconhece a dissociação entre os fundamentos teóricos do sistema e sua operação prática.

Esse gesto, porém, carrega riscos. Ao tornar explícito o que permanecia implícito, a Constituição não apenas reafirma princípios, mas também expõe sua própria crise de efetividade. Reconhece que os fundamentos que deveriam orientar a tributação foram sufocados por práticas burocráticas, disputas federativas e interesses conjunturais.

A explicitação principiológica, por sua vez, gera inquietação hermenêutica legítima. Os novos dispositivos constitucionais estariam apenas confirmando entendimentos já consolidados, ou permitiriam reinterpretações substanciais com potencial para ampliar, ou distorcer, sentidos estabelecidos?

Essa ambiguidade é especialmente problemática para os contribuintes, que convivem com a instabilidade interpretativa como característica estrutural, não excepcional, do sistema tributário brasileiro. A esperança de maior segurança jurídica pode ceder lugar à ansiedade de um novo ciclo de incertezas.

Nesse cenário, corre-se o risco de que a reafirmação dos princípios se converta em formalismo normativo, uma cristalização vazia, ou, pior, em instrumento de manipulação retórica para legitimar práticas tecnocráticas desvinculadas de seu fundamento axiológico. Parte relevante da teoria jurídica contemporânea, como a desenvolvida por Tércio Sampaio Ferraz Jr., adverte para os perigos da técnica jurídica dissociada da legitimidade, alertando para o risco de se converter em instrumento de dominação quando não mediada por um projeto político-jurídico democrático.

Entre potestas e auctoritas: efetividade da reforma

potestas — entendida como poder constituinte e legislativo — possui competência para redigir normas e estabelecer princípios, mas não para garantir sua efetividade. A história do direito tributário brasileiro demonstra que a abundância normativa não assegura a funcionalidade sistêmica. Pelo contrário, a hipertrofia legislativa frequentemente obscurece mais do que esclarece.

É da auctoritas, autoridade técnica, hermenêutica e prudencial — que depende a tradução dos princípios constitucionais em práticas istrativas e judiciais coerentes. Essa autoridade manifesta-se através de múltiplos atores: intérpretes especializados, órgãos fiscais, tribunais, legisladores ordinários e, fundamentalmente, a própria comunidade tributária.

auctoritas não se limita à interpretação; ela envolve também a capacidade de planejar com senso histórico, aplicar com proporcionalidade e reconhecer os limites do próprio sistema. Sua função é impedir que a esperança depositada na reforma se transforme em mera retórica.

Nesse ponto, é pertinente lembrar que a técnica, como lembra Ferraz Jr., pode servir tanto à racionalização do poder quanto à sua contenção. A técnica tributária, quando operada com prudência, historicidade e responsabilidade institucional, transforma-se em ferramenta de estabilização jurídica, não de dominação cega. O sucesso da reforma tributária, por conseguinte, depende da articulação virtuosa entre potestas e auctoritas. É precisamente na fenda entre o texto e a aplicação que se decide o destino da reforma.

Além da esperança retórica

A Emenda Constitucional nº 132/2023 não representa nem a solução definitiva nem o aprofundamento da crise do sistema tributário brasileiro. Ela é, antes, o reflexo mais sofisticado da tensão entre o desejo de transformação e o risco de repetição dos mesmos equívocos.

A verdadeira reforma tributária não se esgota na explicitação de princípios ou na criação de novas estruturas normativas. Ela exige uma mudança de paradigma que reconheça a complexidade inerente ao fenômeno tributário e a necessidade de instrumentos técnicos e prudenciais adequados para sua gestão.

O mito de Pandora nos ensina que, uma vez aberta a jarra, não há retorno ao estado anterior. Os males do sistema tributário brasileiro são realidade com a qual devemos conviver e trabalhar. A questão não é selar novamente a jarra, o que seria impossível, mas decidir o que fazer com a esperança que resta.

Essa esperança não pode ser apenas retórica. Ela deve traduzir-se em práticas institucionais que priorizem a segurança jurídica, a eficiência operacional e a justiça distributiva. Cabe à técnica tributária, aliada à prudência constitucional, proteger o sistema de si mesmo e garantir que a reforma cumpra suas promessas fundacionais.

O futuro do sistema tributário brasileiro não depende apenas de novas leis ou princípios, mas da capacidade de articular potestas e auctoritas em um projeto comum de reconstrução institucional. Somente assim a esperança que sobrou no fundo da jarra poderá transformar-se em realidade concreta.

 


Bibliografia

-BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

-FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2022.

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