Opinião

Transação tributária: a etapa que faltava no manual de M&A

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13 de junho de 2025, 13h16

Não são poucos os momentos em que uma operação de M&A morre na praia antes mesmo de sair do cais. E, entre as causas mais comuns de afogamento precoce, o ivo tributário figura com protagonismo.

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Não importa o quão estratégica, inovadora ou lucrativa seja a empresa-alvo: se o esqueleto fiscal estiver trancafiado no armário — ou pior, exposto na sala de jantar —, dificilmente haverá um comprador disposto a pagar o que se imagina justo, ou mesmo a seguir em frente. Nesse contexto, a transação tributária surge como o antídoto jurídico, econômico e reputacional contra a contaminação do valuation por incertezas fiscais. Mais do que uma ferramenta de regularização, ela é um instrumento sofisticado de engenharia pré-due diligence, capaz de transformar uma empresa “com problemas” em uma oportunidade irresistível.

De forma curiosa, o mercado ainda subestima o valor estratégico da transação tributária, tratando-a como uma medida desesperada de empresas em crise. Mas essa percepção começa a ruir, especialmente após a Lei nº 13.988/2020 e os desdobramentos práticos da Portaria PGFN nº 6.757/2022. Hoje, é perfeitamente viável negociar com a União a regularização de débitos com descontos relevantes, prazos estendidos e até uso de prejuízo fiscal — em troca, claro, de um pouco mais de transparência e planejamento. E o que antes era visto como fraqueza, agora se revela sabedoria: assumir os ivos e tratá-los com inteligência jurídica pode ser, paradoxalmente, o diferencial competitivo de uma operação de venda.

Quem atua em M&A sabe que due diligence tributária não é ciência oculta. É matemática jurídica com viés contábil e reflexo direto no preço. Se os ivos são elevados e mal geridos, o desconto virá — e virá pesado. É aqui que entra o chamado “clean-up fiscal pré-venda“, prática já consagrada em jurisdições maduras como os EUA, o Reino Unido e a Alemanha, onde vender empresa com ivo oculto é quase uma ofensa moral. Lá, práticas como pre-closing tax audit e tax settlements antes da do SPA são tão comuns quanto cláusulas de escrow ou R&W insurance.

Como funciona no exterior

No Reino Unido, a HMRC oferece mecanismos de acordo antecipado, como o “Contractual Disclosure Facility“, que permite a resolução rápida de disputas fiscais com redução significativa de penalidades. Nos EUA, o IRS opera com o “Offer in Compromise“, que permite que contribuintes — inclusive empresas — negociem o pagamento de débitos fiscais por um valor inferior ao originalmente devido, com critérios claros de viabilidade econômica e boa-fé. Já na Alemanha, a regularização prévia é quase mandamento tácito para qualquer empresa que almeje uma operação de alienação com investidores institucionais. Essas práticas tornam o ambiente mais previsível, valorizam a governança e demonstram maturidade fiscal do vendedor.

No Brasil, essa sofisticação ainda engatinha, mas os sinais de mudança são evidentes. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional reportou, em dados públicos de 2025, que mais de R$ 34 bilhões foram regularizados por meio de transações tributárias, com adesão crescente por parte de empresas médias em processo de reestruturação. A lógica é simples: quanto menor o risco percebido, maior o valor percebido. Isso se aplica não apenas ao risco operacional ou jurídico, mas — sobretudo — ao risco tributário. Compradores, especialmente os institucionais ou estrangeiros, têm horror a ivos imprevisíveis e adoração por contingências mensuráveis.

A transação tributária, quando bem construída, transforma o ivo potencial em obrigação certa, parcelada e reconhecida. Mais que isso, sinaliza ao comprador que ele está lidando com uma empresa madura, que enfrenta seus problemas com racionalidade — e não com improviso.

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Envolvimento de vários setores da empresa

Mas atenção: não basta simplesmente aderir a um edital de transação e achar que isso, por si só, resolverá tudo. O verdadeiro valor da medida está na sua integração com o planejamento da operação. A transação deve ser pensada como parte do roap de venda, com cronograma alinhado à due diligence e aos milestones do deal. Deve envolver o Jurídico, o Contábil, o Financeiro e, sobretudo, o time de M&A. É preciso avaliar se vale a pena regularizar tudo ou apenas parte dos débitos, se há riscos em requalificar dívidas em discussão e como isso impactará a narrativa de venda. O buyer memo que embasa a decisão do investidor precisa refletir não só a existência de um ivo, mas o caminho já trilhado para enfrentá-lo.

Aqui entra um ponto muitas vezes negligenciado: a comunicação estratégica. Empresas que realizam o clean-up fiscal pré-venda devem saber contar essa história. E contar bem. Não é vergonha ter tido problemas fiscais. Vergonha é fingir que eles não existem — e ser desmascarado na due diligence. Uma narrativa bem construída, amparada por pareceres técnicos, cronograma de compliance e documentação da transação com a PGFN ou estados, pode virar um trunfo no data room. Em muitos casos, isso reduz a necessidade de garantias contratuais e mitiga as discussões sobre retenções ou cláusulas de indenização.

Há, claro, limites para a utilidade da transação tributária como ferramenta de M&A. Nem todos os ivos são transacionáveis, e há discussões cuja conversão em dívida líquida e certa pode ser contraproducente. Além disso, o timing é crucial: uma transação iniciada tardiamente pode não estar concluída até a do contrato, gerando insegurança para as partes. Também é preciso avaliar se a empresa tem fôlego financeiro para cumprir os termos da transação, ou se isso acabará onerando demais o fluxo de caixa. Nesses casos, medidas híbridas — como seguros, cláusulas de escrow ou earn-outs atrelados ao pagamento de débitos — podem ser alternativas.

Assimetria informacional

Não se pode esquecer ainda da assimetria informacional. Compradores experientes valorizam empresas com ivos conhecidos e bem tratados. Já os amadores — e aqui mora o perigo — tendem a subestimar o risco tributário, pagando caro por empresas que, meses depois, os conduzirão a discussões istrativas ou judiciais que corroem margens e confiança. Nesse contexto, a transação tributária funciona como um selo de qualidade: quem o exibe, sinaliza compromisso com a transparência e com a governança.

 O futuro aponta para a consolidação da transação tributária como etapa obrigatória de qualquer preparação para M&A. Assim como é impensável vender uma empresa sem revisão contábil ou sem atualizar seu contrato social, também será insensato ignorar os instrumentos legais de regularização fiscal. E o mercado — esse juiz silencioso e implacável — já começou a precificar essa negligência. Quem limpa a casa antes da visita recebe elogios e propostas generosas. Quem esconde a bagunça embaixo do tapete, geralmente ouve apenas o silêncio — ou o som de uma porta se fechando.

É curioso pensar que, em um país como o Brasil, onde o sistema tributário é uma colcha de retalhos costurada por jurisprudências volúveis e normas contraditórias, a regularização fiscal possa ser um ativo de tão alto valor. Mas é justamente nesse caos que emerge a oportunidade. Em um ambiente de insegurança estrutural, quem oferece segurança, mesmo que relativa, destaca-se. A transação tributária é, assim, mais do que uma solução para problemas ados: é uma promessa de estabilidade futura.

A lição é clara, embora contraintuitiva: itir problemas e resolvê-los publicamente é melhor negócio do que escondê-los em cláusulas contratuais. O mercado está menos interessado em empresas perfeitas e mais atraído por empresas confiáveis. E confiança nasce da previsibilidade. Nesse sentido, o clean-up fiscal pré-venda deixa de ser um capricho jurídico e a a ser uma tática inteligente — quase uma arte. Uma arte de vender com honestidade e, por isso mesmo, com lucro. Afinal, ninguém quer comprar uma caixa preta. Mas muitos pagarão bem por um livro aberto, mesmo que com algumas páginas amareladas. Desde que legíveis, assinadas e carimbadas pela Receita Federal.

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