A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera
11 de maio de 2025, 8h00
Em “A insustentável leveza do ser”, Milan Kundera (1929-2023) inventou e contou-nos a trajetória de um médico dissidente do regime socialista da então Tchecoslováquia. Era 1968, aquele ano que não terminou, na lembrança do título daquele inesquecível livro de Zuenir Ventura. A dissidência do médico revelou-se com a publicação de um texto no qual comparava o mitológico Édipo em face de sua verdade, com seus conterrâneos tchecoslovacos ao longo da Primavera de Praga.

Por que a evocação de Édipo, o personagem que teria assassinado ao pai e se casado com a própria mãe? É que o Édipo reconheceu sua culpa e furou os olhos (para não ver mais as desgraças do mundo) quando descobriu que havia cometido o parricídio e depois ter cometido incesto com a mãe.
O médico acusava seus concidadãos de não terem reconhecido que erraram, isto é, de não terem itido a culpa na condução dos negócios do país. Aceitaram pacificamente a imposição soviética, ao contrário de Édipo, que expiou sua culpa. Por ser opositor do regime, o médico (que era cirurgião) foi forçado a abandonar a profissão. Sobreviveu lavando vidraças. Nas últimas páginas do livro era motorista de caminhão.
É um livro de época. A crítica ao regime soviético é seu mais importante núcleo narrativo: “Nos países comunistas, a inspeção e o controle dos cidadãos são atividades sociais essenciais e permanentes. Para que um pintor obtenha autorização para expor, para que um cidadão consiga um visto para ar férias a beira-mar, para que um jogador de futebol seja aceito na seleção nacional, é preciso que, em primeiro lugar, se reúnam todas as espécies de relatórios e de certificados que lhe digam respeito (do porteiro, dos colegas de trabalho, da polícia, da célula do partido, da comissão da empresa onde trabalha), e esses atestados são em seguida completados, avaliados, recapitulados por funcionários especialmente dedicados à essa tarefa.”
O trecho evidencia com precisão o funcionamento burocrático e asfixiante do Estado sob o regime comunista, em especial no contexto soviético e de seus satélites. Kundera não exagerou: descreveu, com sobriedade documental, a forma como a vida cotidiana era regulada por uma estrutura de vigilância difusa, descentralizada, embora totalizante.
A máquina estatal se impunha pela polícia secreta, por vizinhos, colegas e comissões internas, que produziam, acumulavam e avaliavam relatórios sobre a conduta e a lealdade ideológica de cada indivíduo.
O controle descrito por Kundera é mais que uma limitação de direitos: é a institucionalização da desconfiança como técnica de governo. A crítica não se detém na censura cultural ou nos impedimentos à liberdade de expressão. Alcança um ponto estrutural: a submissão da esfera privada à lógica partidária, em que cada gesto precisa ser legitimado por instâncias ideológicas. O fato de que um pintor, um jogador ou um simples turista precisem da chancela de múltiplos pareceres revela que, sob o regime, não há cidadão, apenas um elemento de um fichário.
Ao destacar que o controle é uma “atividade social essencial e permanente“, Kundera desmontou qualquer ilusão de que o autoritarismo seria episódico ou emergencial. O sistema era construído para durar e para se infiltrar em todas as dimensões da vida. Não se tratava do excesso pontual de um regime violento. Era, segundo Kundera, um modo de organização social que transformava a vigilância em rotina, e a delação em prática institucionalizada. A denúncia de Kundera, por isso, é menos panfletária do que estrutural: mostra como um Estado pode se tornar onipresente também pela normalização do controle.
O livro enfrenta importantes temas políticos e existenciais. É também um livro sobre a dificuldade nas nossas escolhas, e sobre a responsabilidade que delas resulta. É um livro sobre as grandes escolhas da vida: política, profissão, vida sentimental, religião, sexualidade.
Kundera emigrou para a França em 1975, onde faleceu com mais de 90 anos. Suas cinzas, e as de sua esposa, Věra, foram repatriadas para Brno, a cidade onde Kundera nasceu. Brno fica atualmente na República Tcheca. Ao que consta, Kundera queria ser reconhecido como um autor francês, que escrevia em língua sa. Foi, no entanto, um exilado e, nesse sentido, responsável por sua escolha política. Perdeu sua cidadania de origem, que lhe foi posteriormente devolvida. Rompeu com seu país. A opção foi definitiva e dolorosíssima.
O exilado é um mutilado permanente. Condenado a viver entre a lembrança de uma pátria perdida e a necessidade de adaptação ao território que o recebe, sua existência é marcada pela instabilidade. A aceitação dessa condição é menos um gesto íntimo e mais uma imposição prática para sobreviver. O exílio, enquanto experiência política, revela o fracasso dos Estados em garantir pertencimento e o uso sistemático do deslocamento como forma de silenciamento. Ao exilado não se pede apenas que sobreviva, mas que o faça calado — deslocado de sua terra e deslocado de sua voz.
O enredo do livro é envolvente. Inicialmente, o médico abandona a mulher e o filho. Não quer mais vê-los. É obcecado com as mulheres que encontra. Possui muitas amantes. Apega-se a uma delas. Era uma mulher do interior. Era muito simples. Lia muito e interessou-se pelo médico quando o viu com um livro na mão. Por sua vez, chamou a atenção do médico talvez pelo livro que carregava.
Percebo aí uma metáfora da sedução marcada pela identidade de interesses. Há no livro uma sugestão de uma imaginária “memória poética”. Talvez tenhamos no cérebro, uma região que poderíamos chamar de “memória poética” — um lugar em que se guardam encantamentos, emoções profundas e tudo que dá sentido e beleza à existência. Eu vivo repleto de memórias poéticas.
A relação entre o casal surgiu do reconhecimento silencioso de uma sensibilidade comum. É nessa sensibilidade que o encontro entre eles se ancorava, como se a literatura fosse o terreno possível da aproximação. O livro sugere, assim, que o verdadeiro vínculo entre as pessoas talvez possa estar mais no que lemos e no que nos lembramos, do que dizemos.
Porém, ao mesmo tempo, o médico relaciona-se com uma artista plástica, solteira, obcecada com homens casados. A artista aproximou-se de um professor universitário, que era casado. O professor era idealista, sonhador, militante, morava em Paris. Ingênuo, o professor confessou a traição, contando toda a história para sua então esposa. A amante seduzida abandonou o professor; era condicionada a homens comprometidos, o que não era mais o caso, porque o professor abandonara a mulher. O professor levou ao limite seu engajamento político tentando entrar no Camboja, junto com outros militantes. Eram médicos, celebridades, ativistas políticos. O médico, por sua vez, finalmente se conforma com a vida simples que ou a viver no interior.
O título desse belíssimo livro é enigmático. Segue aqui a minha interpretação, com base nas informações contidas no livro. Como deve ser a vida? Leve ou pesada? Nietzsche insistia que uma vida pesada seria uma vida verdadeiramente autêntica, porque carregada de comprometimentos, responsabilidades e autenticidade. Parmênides, por outro lado, sugeria uma vida leve, isto é, descomprometida. Kundera ponderou que a leveza seria o ideal, porém um ideal insustentável. É o tema da insustentável leveza do ser. Eu levo uma vida emocionalmente muito pesada. Nada de leveza.
Encerrando essa leitura densa e multifacetada, tem-se uma obra de inquietações filosóficas e denúncias políticas, que entrelaça com notável precisão a dimensão íntima das escolhas individuais à estrutura opressiva de um regime totalitário. O médico dissidente, o exílio de Kundera, a memória poética, os dilemas existenciais, a burocracia sufocante — tudo se articula para formar um sobre a fragilidade humana diante das engrenagens ideológicas e afetivas que moldam nossas decisões.
O título, ao propor uma “leveza” que não se sustenta, dá nome a essa tensão essencial entre o desejo de liberdade e o peso da responsabilidade. Kundera não ofereceu alívio nem consolo: apenas a constatação de que viver, sob qualquer regime ou escolha, é sempre se mover entre o irreparável e o inadiável.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!