PL 4/2025: reforma do Código Civil e o novo 'Livro de Direito Civil Digital'
23 de maio de 2025, 16h23
O Projeto de Lei 4/2025 propõe alterações no Código Civil de 2002, modificando 1.197 de seus 2.046 artigos — o equivalente a 58,5%. As mudanças suscitam questionamentos sobre se, na prática, não estaríamos diante de um novo código, ainda que não explicitamente declarado como tal.

Juristas e operadores do direito têm expressado divergências quanto à fundamentação do PL, especialmente porque a dita “reforma” supera em extensão a própria transição do Código Civil de 1916 para o de 2002. A comissão que redigiu o PL justifica a reforma do Código Civil, principalmente, para que o mesmo seja modernizado.
Entretanto, o argumento de que o Código Civil está “desatualizado” por ter sido promulgado em 2002 desconsidera sua constante evolução normativa: o diploma foi modificado em todos os anos desde sua promulgação (de 2003 a 2024, exceto, smj, em 2006), demonstrando que o sistema tem sido dinâmico e adaptável às novas demandas. O Código atual conversa harmonicamente com leis que vieram atualizar o arcabouço legal quanto a novas tecnologias, como o Marco Civil da Internet e a LGPD, por exemplo.
Outro ponto importante é a forma como foram redigidas e endereçadas as modificações que, muitas das vezes, não observaram a Lei Complementar 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis.
‘Livro do direito digital’
Uma importante alteração proposta e, talvez, uma das mais polêmicas, foi a criação de um novo “livro” denominado “Do Direito Civil Digital”.
A nosso ver, não há motivo para inserir-se um livro, capítulo ou título de direitos digitais no Código Civil. O ambiente digital é apenas uma extensão do ambiente físico. Quando inventaram o telefone, a Internet, o celular, o smartphone, as redes sociais, não mudaram o Código Civil incluindo um “livro” específico chamado, por exemplo, Direito Civil da Internet ou Direito Civil das Telecomunicações ou Direito Civil das Redes Sociais.
Diferentemente, e sabiamente, quando necessário, novas leis dedicadas ao assunto foram criadas, mas que podiam ser interpretadas em harmonia com o Código Civil (que trata de todos os assuntos de cunho cível em qualquer ambiente — seja ele físico ou digital) e, quando imprescindível, alteraram apenas artigos específicos do Código com base em tais novas leis.
Se realmente se faz mandatória alguma modificação, e não discordamos disto, ela pode ser feita nas leis próprias para tanto (como sempre foi e tem sido, até então) e, caso seja imprescindível, até mesmo no próprio Código Civil, porém, não em um novo e desnecessário “livro”, quando já existem outros Livros específicos para cada assunto.
Nossa opinião é a de que tal “Livro de Direito Civil Digital” contém artigos que deveriam ser completamente descartados, pois já estão presentes ou no próprio Código Civil ou em outras leis — ou que deveriam ser realocados para outros livros do Código Civil ou para leis existentes, como o Marco Civil da Internet, a LGPD, o CDC, o ECA, a Lei do Registros Públicos, etc.
São exemplos os seguintes artigos propostos no novo Livro de Direito Civil Digital:
os referentes à proteção de dados pessoais, que repetem o já disposto na LGPD;
os sobre a necessidade de reparação civil em caso de violação de dados pessoais, que versa sobre o já disposto artigo 927 do Código Civil;
os sobre celebração de contratos eletrônicos e s eletrônicas, que estão, em sua maioria, sendo redundantes com normas já existentes. Os que, acaso, não redundam, deveriam ser alocados no Livro de Obrigações, no Capítulo de Contratos, por exemplo, ou no Código de Processo Civil, no que tange às s eletrônicas, pois o mesmo já tratou do assunto em seu artigo 784;
os sobre direitos e deveres de provedores no ambiente digital que repetem (e não revogam!) assuntos já tratados na Lei do Marco Civil da Internet (inclusive, o art. 19 desta lei está em discussão no STF);
os sobre direito do consumidor digital, que invade a esfera do Direito do Consumidor e deveriam estar, por óbvio, no Código de Defesa do Consumidor;
os que autorizam que herdeiros em contas, arquivos digitais e criptoativos do falecido: em sua maioria, mais do mesmo, estendendo ao virtual o que já ocorre no mundo físico, e outros, sobre o a contas e mensagens de redes sociais por herdeiros, que podem ser novidade, mas que deveriam estar junto aos que tratam dos direitos da personalidade e sucessões.
Outros artigos, realmente nos parecem ser completamente novos e necessários, como por exemplo:
os dedicados aos neurodireitos, que tratam da saúde mental do indivíduo no ambiente digital: mas de qualquer forma, o ideal seria integra-los aos capítulos que versam sobre privacidade e integridade ou adicioná-los em lei específica;
os que tratam da herança digital e criam regras para herdeiros usarem voz e imagem de pessoas falecidas para criação de imagens por meio de inteligência artificial, inclusive para fins comerciais (lembramos aqui o caso da publicidade feita com a imagem de Elis Regina): a nosso ver, deveriam estar inseridos nos capítulos que tratam sobre sucessões e/ou sobre direitos da personalidade (imagem e voz).
Em suma, a reforma do Código e a criação de um novo livro de direitos digitais preocupam porque se trata de uma mudança radical sem amplo debate, pode gerar insegurança jurídica, aumenta o risco de judicialização; traz problemas de clareza e entendimento; repete (e altera) dispositivos já existentes sem revoga-los; e não respeita integralmente a LC 95/98.
Por enquanto, o PL 4/2025 ainda tramita no Congresso e deve ar por comissões antes de ser votado. Neste interim, juristas e entidades do Direito manifestam resistência e preocupações, pedindo mais transparência e debate técnico antes de qualquer aprovação.
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