Opinião

Resposta de um viúvo moço ao artigo 'Viúvas de Savigny na Terra de Vera Cruz'

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  • é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) membro associado do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e sócio do escritório Etad.

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23 de maio de 2025, 13h22

“Uma pessoa razoável não tem certas dúvidas.”
Ludwig Wittgenstein, Sobre a Certeza, § 220

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Projeto propõe alterar mais de 1.100 artigos do Código Civil

Em artigo recente, Rodrigo Marchetti Ribeiro e Lucas Fucci Amato trataram do Projeto de Lei do Senado nº 04/2025, que pretende reformar o Código Civil. Apesar do título, o artigo voltou-se tanto aos autores quanto aos críticos da iniciativa, identificando em ambos um vício de origem: “A crença de que o Direito pode ser objeto de uma aplicação quase matemática está no coração de ambos os lados da contenda”.

No que cabe à oposição, esse pecado original estaria à base das objeções contra a insegurança jurídica trazida pelo projeto. Além de partirem de exemplos supostamente ilusórios de insegurança — no campo dos contratos, da responsabilidade civil e do Direito de Família –, os críticos à reforma seriam herdeiros “do produto final da empreitada dos pandectistas: um sistema que se propõe a ser quase um cálculo matemático jurídico”. Esse projeto, cuja falha teria sido constatada desde Jhering, daria lugar à ideia contemporânea de que “não há uma aplicação mecânica do Direito, produto humano, falível e, nesse sentido, aberto a novas questões”. Ao fim, sintetiza-se: “pode ser que realmente exista algo como a ‘segurança jurídica’, mas não será na dogmática obstinadamente apegada a velhos e já desmentidos dogmas do século 19 que vamos encontrá-la”.

No momento de plena revisão do estatuto básico da vida privada, em que certezas geralmente cristalizadas no texto de lei são postas em xeque, devemos contribuir para que os trabalhos se desenvolvam da melhor forma possível. Um dos modos é, certamente, submeter à crítica o discurso público a respeito do projeto. Contudo, devemos cuidar para que ela seja feita de forma responsável.

Em primeiro lugar, no debate sobre o impacto do projeto na segurança jurídica vivida no Brasil, não vale duvidar se ela, de fato, existe. Duvidar disso é solipsismo jurídico – da mesma ordem daquele que duvida de que os juízes, ao decidir, pretendem aplicar a lei ou de quem disputa que a doutrina tenha qualquer influência no Direito. Trata-se de recusar a pergunta, em vez de engajar-se com o problema nos termos em que é posto.

Entre os que defendem e os que criticam o projeto, é difícil imaginar que alguém entenda por “segurança jurídica” a perfeita determinação, imutabilidade e previsibilidade do direito, como se acreditasse que o conteúdo do Código pudesse ser derivado em uma “aplicação quase matemática” de uma legislação estática por necessidade.

Aliás, em vez de ser uma pretensão de Savigny ou da Pandectística, compreender o direito como ars combinatoria era sonho do jovem Leibniz, inserido em uma tradição intimamente ligada ao direito natural que remonta à Antiguidade [1].

Já partindo da premissa de que não se deduz o conteúdo de uma norma como se faz uma conta, o princípio da segurança jurídica exige que o processo de fixação do conteúdo do Direito se dê por meio da argumentação jurídica, em processo racional e socialmente controlável [2]. Isso reconhece o artigo (“Se queremos segurança jurídica, é lógico que o material primário do processo interpretativo importa, mas importa também que exista uma comunidade de juízes (e outros intérpretes) comprometidos com manter a unidade, integridade e coerência das decisões judiciais”), mas, ao ignorar as ferramentas da doutrina contemporânea para lidar com a indeterminação, reduz-se a relevância do texto legal.

Para que não se tenha dúvida: o material primário não só “importa”, mas delimita as possibilidades do intérprete, o qual, à medida que escapa do que seria o sentido comum do texto, sujeita-se a um ônus argumentativo maior para justificar a interpretação dada. A textura aberta da lei não exclui os casos normais, em que a aplicação da norma é inequívoca [3].

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O problema se coloca justamente quando esses casos normais não são previsíveis, seja pela linguagem do dispositivo, seja pelo uso dos conceitos na comunidade jurídica, brasileira e estrangeira. Este é o caso de uma série de propostas incluídas no projeto.

Injustiça

Escolhendo um dos exemplos do artigo, vamos aos contratos. Relatam os autores que a crítica se volta à maior arbitrariedade do julgador no campo trazida pelo projeto. Mas isso seria, segundo o artigo, uma realidade já consolidada. Nesse sentido, o projeto não aumentaria a insegurança jurídica já vivida no Brasil – “basta uma consulta à jurisprudência de qualquer (frise-se: qualquer) tribunal brasileiro para concluir isso”.

Essa generalização, todavia, é bastante injusta. Em vez de fazer um juízo sobre todas as propostas relacionadas aos contratos, falemos apenas de um singelo artigo: o artigo 478 do Código Civil, que positiva o remédio contra a onerosidade excessiva no Direito brasileiro.

O sistema do Código Civil de 2002 é notoriamente insatisfatório para lidar com as situações em que, por fatos supervenientes, o contrato deve ser extinto ou modificado para se adequar às circunstâncias alteradas face às do momento da celebração. Como lembra Windscheid, ignorar esse problema faz com que ele desvie da porta fechada e entre pela janela [4]. No Direito brasileiro, as bitolas textuais para a extinção ou a modificação dos contratos por onerosidade excessiva são bastante limitadas, chegando doutrinadores de primeira ordem a defender que um dos requisitos — o da extrema vantagem, justamente onde o Brasil quis inovar — seja simplesmente ignorado na aplicação do texto legal [5].

Qual é o resultado de um texto inadequado? Em circunstâncias normais, a simples inaplicabilidade dos remédios associados à onerosidade excessiva, mesmo em casos em que a extinção ou a revisão claramente deveriam ocorrer. Indo à jurisprudência, o que se nota é que o artigo 478 é pouquíssimo aplicado, embora muito suscitado [6]. Pesquisando todos os acórdãos do STJ até o início da pandemia de Covid-19 a respeito de “onerosidade excessiva”, encontramos 64 julgados em que o tema foi discutido. Em nenhum deles, reformou-se a decisão para, corrigindo a apreciação do tribunal inferior, aplicar o remédio [7].

Todavia, em circunstâncias extraordinárias, o texto acaba por ceder, tornando as decisões totalmente imprevisíveis. Quem acompanhou de perto os julgamentos da pandemia se deparou com soluções salomônicas, fundamentadas em toda sorte de argumento: previsões do CDC aplicadas analogicamente, boa-fé, função social do contrato, teoria da imprevisão e onerosidade excessiva (veja-se: não a do Código Civil, mas alguma do céu dos conceitos jurídicos). No STJ, que ainda julga os recursos da época da pandemia, nota-se o relaxamento dos requisitos postos no Código [8]. Lembre-se do aviso de Windscheid.

O artigo 406 do do Código Civil

Diante desse problema, o projeto não traz soluções que melhorem o quadro legal. Embora o texto do artigo 478 seja adequado para refletir, em linhas gerais, os parâmetros esperados pela doutrina atual na aplicação da onerosidade excessiva, o projeto introduz uma nova hipótese legal para lidar com a alteração de circunstâncias com requisitos mais flexíveis (artigo 480-A), além de não fechar a porta do artigo 317, que deveria ficar às obrigações pecuniárias. Logo, com mais válvulas de escape, não se reduz a incerteza que vivenciamos a respeito da onerosidade excessiva. Não se pode ignorar também o risco de a mudança textual recolocar dúvidas que já haviam sido superadas.

Posto que o texto não só “importa”, mas é primordial, e que as mudanças propostas não são neutras, voltamos à questão da comunidade jurídica. É justamente pelo trabalho da doutrina e da jurisprudência que as disposições indeterminadas do Código Civil adquirem e consolidam seus sentidos. No Brasil, por uma série de razões, nossa comunidade jurídica tem baixa capacidade de istrar essas incertezas antes que se façam presentes no Judiciário e, mesmo quando postas às claras, elas não são definitivamente solucionadas.

A disputa a respeito dos juros moratórios é, talvez, o melhor exemplo disso. Desde antes da entrada em vigor do Código Civil, colocou-se o debate se a “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento dos impostos devidos à Fazenda Nacional”, mencionado no artigo 406, referia-se à Selic ou à taxa de 1% a.m. prevista no artigo 161, §1º, CTN. Colocada a questão, de enorme relevância prática, a resposta por um ou por outro deveria ser rápida e clara. Apesar disso, a jurisprudência não soube dá-la [9], impactando sensivelmente a vida econômica do país. Que advogado garantiria ao seu cliente, com convicção, que uma ou outra taxa seria efetivamente a aplicada na decisão? Na dúvida, calcula-se o mais elevado para provisionamento, aumentando o custo para todos.

Fazendo o que uma reforma do Código Civil deveria ter como meta, o artigo 406 foi modificado pela Lei 14.905/2024 para prever, em definitivo, que a taxa é a Selic. Não fosse o baixo capital simbólico até da própria jurisprudência do STJ, a reforma seria desnecessária [10].

Em contrapartida, a boa-fé objetiva, cujo potencial subversivo é enorme, tem sido usada de forma cada vez mais técnica pelo esforço conjunto da doutrina e da jurisprudência de construção de casos típicos e de autocontenção.

Como se pode ver, uma comunidade jurídica pujante é um fator determinante para que haja segurança jurídica no país. No entanto, o projeto não pode ignorar o que ela de fato é no Brasil, legislando a partir do que se gostaria que ela fosse. Prevendo-se uma série de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados, é irreal supor que as incertezas inerentes à redação aberta dos dispositivos poderão ser trabalhas e neutralizadas por nossa comunidade jurídica com qualquer celeridade, sequer com algum sucesso.

Esses riscos, graves, não podem ser tratados de forma leviana. Não faltam estudos econômicos que demonstram a correlação histórica entre instituições fortes e desenvolvimento [11]. Tornar o Direito mais inseguro, arbitrário e casuístico certamente impacta a vida de todos. Ficando no caso dos contratos, os impactos econômicos nocivos da instabilidade jurisprudencial já foram demonstrados no sistema agroindustrial [12].

Por fim, uma nota a respeito do título. A discussão ao redor do projeto realmente tem muito a ver com Savigny e seus críticos, mas não pelo motivo posto no artigo. Nas conclusões de Savigny a respeito da proposta de Thibaut, lemos o seguinte: “Estamos de acordo quanto ao objetivo: nós [tanto ele quando os que defendiam um Código] quereremos a criação de um direito seguro, seguro contra a interferência da arbitrariedade e das convicções injustas […]” [13]. Divergiam quanto aos meios: seja pela reforma legislativa, seja pelo desenvolvimento da cultura jurídica do país, que acabaria por superar qualquer deficiência das fontes. Para quem se preocupa com a segurança jurídica – e, pelo jeito, não são todos –, há muito o que aprender com a tradição.

 


[1] VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília: Ministério da Justiça, 1979, pp. 71-73.

[2] “Essa percepção da segurança jurídica, centrada na determinação normativa, deve, assim, ceder o a um entendimento fundado na controlabilidade semântico argumentativa. Nesse modo de compreender, ela deixa de ser propriedade do Direito, para ser algo a ser buscado no Direito, mediante processo de legitimação, de determinação, de argumentação e de fundamentação normativas, capazes de enfrentar os problemas ontologicamente inerentes ao Direito – problemas de prova, de qualificação, de interpretação e de relevância. Mais do que um Direito seguro, tem-se um direito à segurança jurídica, não como algo presenteado pelos dispositivos normativos – como se fora unicamente um objeto a ser meramente desvelado por meio do método discursivo circunscrito à descrição da linguagem -, mas como algo a ser buscado por meio de um método metadiscursivo destinado à organização e à estruturação da experiência concernente ao uso da linguagem. A segurança jurídica, nessa perspectiva, deixa de ser uma garantia de conteúdo a ser encontrada por meio de fatores exclusivamente linguísticos para se transformar em garantia de respeito a ser construída por intermédio de elementos semântico-argumentativos.” (ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 712)

[3] HART, H. L. A. The concept of law. 3. ed. Oxford: OUP, 2012, p. 135.

[4] WINDSCHEID, Bernhard. Die Voraussetzung. Archiv für die civilistische Praxis, v. 78, n. 2, 1892, p. 197.

[5] Por todos, cf. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil. Vol. VI, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 911.

[6] Veja-se, a título de exemplo, o relato de PELA, Juliana K. Risco e contratos empresariais: a aplicação da resolução por onerosidade excessiva. In: SZTAJN, Rachel; SALLES, Marcos.; TEIXEIRA, Tarcísio. Direito Empresarial. Estudos em homenagem ao Professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa. São Paulo: IASP, 2015, pp. 487-498.

[7] No mais das vezes, o que se vê é o contrário: quando há correção, é para afastar a incidência do instituto. Os exemplos mais notáveis são os das crises de 1999 e 2008 (REsp 1.321.614, 3ª T., rel. p/ acórdão min. Ricardo V. B. C., j. 16.12.2014; REsp 1.581.075, 3ª T., rel. min. Moura R., j. 19.03.2019) e a série de decisões a respeito da ferrugem asiática, cujo leading case é o julgamento do REsp 977.007, 3ª T., rel. min. Nancy A., j. 24.11.2009.

[8] Por exemplo, no REsp 2.070.354, 3ª T., rel. Min. Nancy A., j. 20.06.2023.

[9] Há um excelente panorama do histórico no # 129 do AGIRE, escrito pela professora Gisela Sampaio. Disponível aqui

[10] A propósito, no Projeto, ignora-se a escolha de alguns meses atrás e volta-se a taxa fixa de 1% a.m. no art. 406.

[11] Por todos, cf. NORTH, Douglass C.; THOMAS, Robert P. An economic theory of the growth of the western world. The economic history review, v. 32, n. 1, 1970, pp. 1-17.

[12] REZENDE, Christaine Leles; ZYLBERSTAJN, Decio. Quebras contratuais e dispersão de sentenças. Revista Direito GV, v. 7, n. 1, 2011, pp. 155-175.

[13] SAVIGNY, Friedrich Carl von. Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft. 3. ed. Heidelberg: Mohr, 1840, p. 161. O texto integral do parágrafo, em tradução livre, é: “Estamos de acordo quanto ao objetivo: nós quereremos a criação de um direito seguro, seguro contra a interferência da arbitrariedade e das convicções injustas; igualmente, [queremos] a unidade da nação e a concentração dos seus esforços teóricos no mesmo objeto. Para esse fim, eles exigem um Código, o qual, contudo, traria a unidade desejada apenas à metade da Alemanha, enquanto a outra metade ficaria ainda mais distante. Eu vejo a medida correta [para unificarmos] no desenvolvimento orgânico da ciência jurídica que pode ser compartilhado com toda a nação.”

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