Opinião

Exclusão de responsabilidade civil do advogado proposto pelo projeto do novo CC

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  • é advogado associado da Advocacia Felippe e Isfer atuando no setor de Contencioso Estratégico e Coordenando o setor de Privacidade e Proteção de Dados e especialista em Processo Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacelar.

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25 de maio de 2025, 6h08

Desde que foi disponibilizado, o projeto de novo Código Civil, apresentado no último dia 31 de janeiro pelo então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, vem — corretamente — recebendo inúmeras críticas por parte da comunidade jurídica, em razão da desnecessária proposta de modificação substancial do Direito Privado brasileiro, marcada, principalmente, pela imprecisão técnica e enfraquecimento da segurança jurídica, o que é bastante notável a partir da desarrazoada alteração de questões já há muito consolidadas na doutrina e jurisprudência. Dentre essas, destaca-se o novo regime da responsabilidade civil do advogado.

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Projeto propõe alterar mais de 1.100 artigos do Código Civil

Para bem exercer sua profissão, o advogado deve ter o respaldo legal necessário para atuar com liberdade e independência, moral e ética. Contudo, como todo e qualquer profissional, pelos mais variados motivos está sujeito a causar prejuízo ao cliente durante a prestação de seus serviços e, elementarmente, dentro de critérios bem delimitados, deve ser responsabilizado por seus erros.

Do advogado se exige diligência, empenho e responsabilidade, mas não a garantia de sagrar-se vitorioso na causa. A advocacia é, portanto, obrigação de meio, caracterizada pela assunção do encargo de prestar um serviço, dedicando-lhe atenção e cuidado compatíveis com “as circunstâncias que lhes forem apresentadas, em consonância com o seu título, com os recursos que dispõe e em conformidade com o desenvolvimento da atual ciência, sem se comprometer com a obtenção de certo resultado” [1].

Nesse sentido, age em conformidade com a legislação aquele que atua de maneira diligente e cuidadosa, dedicando empenho e atenção à causa, seguindo técnica jurídica compatível com moderna ciência, o que se traduz, mas não se limita, em acompanhamento da causa, peticionamento pertinente, adoção das medidas necessárias e observância dos prazos processuais. Enfim, cumpre ao advogado representar o cliente em juízo, defendendo os interesses daquele que lhe confiou da melhor forma possível.

Atualmente, não existem discussões sobre tal assertiva, posto que a legislação sobre o tema é bastante clara, havendo pacífica aceitação sobre o atual regime da responsabilidade civil do advogado, amplamente aceito como lógico e razoável.

O advogado, como qualquer outro profissional liberal, está sujeito ao regime geral da responsabilidade civil, previsto no artigo 927 do atual Código Civil, cujos pressupostos são 1) o dano; 2) o nexo causal; e 3) a culpa. Logo, trata-se da responsabilidade subjetiva, de modo que somente responderá por eventual prejuízo causado ao cliente se restar demonstrado o preenchimento dos referidos requisitos.

A matéria também é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, que, em seu artigo 14, §4º, prevê que a responsabilidade pessoal do profissional liberal “será apurada mediante a verificação de culpa”, ao o que o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil estabelece que “o advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa”.

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Denota-se, assim, que há uniformidade na legislação sobre o tema e, em rápida pesquisa na jurisprudência, verifica-se que é aplicada de forma pacífica, coibindo a má prática, viciada por negligência, imprudência e imperícia. Não poderia ser diferente. Pelo seu forte cunho social, deve-se exigir parâmetros mínimos de quem, sob o manto do título, defende os relevantes direitos daquele que lhe outorga poderes para tanto, com repercussões patrimoniais ou morais.

Afronta e desserviço

Todavia, sem motivo aparente, o projeto do novo Código Civil pretende alterar tal sistemática. Isto, pois, como consequência do artigo 953-A, cria regime de exceção, retirando a punibilidade do advogado público ou privado em caso de culpa, a qual ficará limitada às hipóteses de dolo ou fraude. Isso significa extinguir a figura do “erro inescusável”, tornando todo tipo de erro cometido justificável à luz do direito civil. Na prática, impede-se que o cliente, lesado pela negligência, imprudência ou imperícia de seu patrono, obtenha a justa indenização pelo prejuízo sofrido.

Significa dizer que o causídico que deixa de apresentar recurso com provável chance de êxito, que não ajuíza a ação dentro do prazo legal, que interpõe recurso manifestadamente incabível ou que pratica qualquer outro absurdo equiparado, o que, infelizmente, não é raro acontecer, ficaria isento de responder pelas repercussões negativas que seus atos possam causar à parte. A esta, caberia somente a difícil missão de comprovar que o advogado assim agiu de modo intencional ou ardiloso, com o declarado objetivo de prejudicá-la.

A aludida previsão é uma afronta à sociedade e um desserviço à classe, pois indevidamente protege o mau profissional em detrimento dos bons, perpetuando no imaginário popular uma ideia negativa sobre a seriedade dos advogados.

Do ponto de vista do cidadão comum, é simplesmente inexplicável que possa ser vítima do relapso e da desqualificação de determinado prestador de serviços, o qual, independentemente do prejuízo que lhe cause, não poderá ser acionado para arcar com indenização compatível, sobretudo, quando a legislação veda esse direito especificamente em relação a essa particular classe sem nenhum motivo aparente. A desproporcionalidade da legislação acentuará a percepção de “nebulosidade dos procedimentos jurídicos ininteligíveis aos leigos” [2].

E, embora inicialmente não aparente sê-lo, tal efeito é extremamente nocivo ao mercado da advocacia, visto que a proteção injustificada dos maus elementos lesa aqueles que exercem seu mister com a prudência exigida da profissão.

Aversão à advocacia

Em seu prestigioso artigo “The Market for ‘Lemons’: Quality Uncertainty and the Market Mechanism” [3], o Nobel de Economia George Akerlof vale-se de uma análise do mercado de carros usados para comprovar que um mercado dominado por alternativas ruins ao consumidor acaba por afetar o preço e, consequentemente, a disponibilidade de boas opções.

De forma bastante resumida, o economista demonstra que quando não há mecanismos para afastar os veículos problemáticos do mercado, estes tendem a ser preponderantes a ponto de não ser possível ao consumidor distingui-los dos produtos bons. Diante da incerteza, os preços tendem a baixar. Aqueles que detiverem bons carros não desejarão se desfazer deles por preços baixos, de modo que as boas opções ficam escassas, contribuindo para a proliferação de carros ruins para suprir a demanda do mercado.

E é esse o risco que o artigo 953-A do projeto de Código Civil traz para a prática da advocacia. À medida que casos de notória negligência, imperícia ou imprudência profissional ganharem destaque pela impunidade de seus autores, pairará sobre a advocacia como um todo uma incerteza, materializada pela aversão aos serviços jurídicos.

O advogado que, diligentemente, representa os interesses de seu cliente com profissionalismo e técnica responderá pelos efeitos deletérios da isenção concedida àquele que não o faz, tendo que seguir competindo com excelência em um mercado que não afasta o mau profissional.

Conclui-se, portanto, que a exclusão da responsabilidade do advogado em caso de culpa, proposta pelo artigo 953-A, é tão somente mais um exemplo de alteração impensada e injustificável apresentada pelo projeto do novo Código Civil, a qual reforçará estigmas que vêm sendo duramente combatidos pela classe. A criação de um regime especial de responsabilidade civil não encontra respaldo na lógica e muito menos na moralidade, e acabará sendo, em um futuro próximo, prejudicial a toda a advocacia.

 


[1] STOCO, Rui. Responsabilidade civil do advogado à luz das recentes alterações legislativas. Revista dos Tribunais. v. 797/2002. p. 60 – 80. Mar., 2002

[2] FARAH, Elias. Advocacia e responsabilidade civil do advogado. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. v. 13/2004. p. 181 – 208, Jan – Jun, 2004.

[3] ARKELOF, George. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, V. 84, Issue 3 (Aug., 1970), 488-500. Disponível aqui

Autores

  • é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, especialista em Processo Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacelar Filho e Mestre em Direito dos Negócios pela FGV-SP e advogado do Setor Cível e Contencioso da Advocacia Felippe e Isfer.

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