Direito da Insolvência

Ação judicial e financiamento DIP: autonomia privada e proteção coletiva

Autores

  • é especialista em Recuperação Judicial e Falências pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e sócia do escritório Nascimento e Rezende Advogados.

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  • é desembargadora do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) doutora em Direitos Instituições e Negócios pela UFF (Universidade Federal Fluminense) mestra pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e graduada pela UFRJ.

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26 de maio de 2025, 11h17

O presente artigo analisa o financiamento debtor in possession (DIP) à luz da Lei nº 11.101/2005 (LREF), trazendo o comparativo da aplicação do instituto antes e depois da reforma introduzida pela Lei nº 14.112/2020, destacando sua importância como mecanismo essencial para a efetividade da recuperação judicial. O DIP finance permite o aporte de “dinheiro novo” à empresa em crise, oferecendo fôlego financeiro no período mais sensível da recuperação e servido como instrumento de concretização do princípio da preservação da empresa, previsto no artigo 47 da LREF.

A análise parte da premissa de que o DIP é um instrumento que serve não apenas aos interesses do devedor e de seus credores, mas também à coletividade, por promover a manutenção da atividade empresarial, dos empregos, da arrecadação tributária e da cadeia econômica associada. A lei impõe três requisitos para sua concessão: (i) autorização judicial após manifestação do Comitê de Credores ou, na ausência deste, do judicial; (ii) destinação dos recursos à atividade empresarial da recuperanda ou à reestruturação de seus ativos; e (iii) garantia sobre bem do ativo não circulante.

Embora a legislação brasileira não exija a realização de um processo competitivo entre credores ou financiadores para a concessão do DIP, tampouco submeta a operação à deliberação da assembleia de credores, o juiz deve zelar pela ampla divulgação de informações e pelo contraditório. A ausência de exigência legal para consulta prévia a todos os credores é justificada pelo risco de paralisar negociações e pela urgência da liberação dos recursos.

Nesse sentido é essencial que a atuação do magistrado esteja fulcrada em harmonizar os interesses da coletividade, sem prejuízo a autonomia negocial do devedor em recuperação judicial e a manutenção de sua atividade.

O artigo também examina comparativamente a disciplina do DIP no direito norte-americano, especialmente a Seção 364 do Bankruptcy Code, onde o processo é detalhadamente estruturado com fases, critérios objetivos e salvaguardas processuais — realidade ainda não plenamente reproduzida no Brasil. Apesar disso, a doutrina nacional aponta que a lacuna procedimental na legislação brasileira pode ser preenchida pela prática jurisprudencial e pelos princípios da transparência e eficiência.

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Por fim, conclui-se que a autorização judicial do DIP não é mera faculdade, mas sim um poder-dever do juiz diante da demonstração da necessidade, da finalidade compatível e das garantias legais. O financiamento DIP deve ser incentivado como política estruturante da recuperação empresarial, respeitando-se a segurança jurídica, a razoabilidade das condições e a efetiva comunicação com os credores interessados.

Breves considerações sobre o direito norte-americano

O financiamento DIP foi inserido na legislação brasileira somente em 2020, com o advento da Lei nº 14.112/2020 que reformou a Lei nº 11.101/2005, inserindo os artigos 69-A ao 69-F, tendo como inspiração no direito americano — DIP Finance — positivado no o U.S. Bankruptcy Act (Title 11 do U.S. Code) Section 364 — consolidando-se como a mais importante fonte de aportes financeiros na sociedade, conhecido como o fresh money, cujo destino é a manutenção das atividades no período de reestruturação.

No direito norte-americano, o legislador garantiu aos investidores preferências e garantias sobre o crédito investido para maximizar as chances de soerguimento.

Conforme o § 364 do Código Norte-Americano de Falências, existem quatro formas principais de constituição de dívida durante o processo de reestruturação empresarial. A primeira permite a obtenção de crédito não garantido no curso normal dos negócios, considerado como istrative expense, sem necessidade de autorização judicial.

A segunda forma envolve a concessão de crédito não garantido fora da rotina empresarial, exigindo autorização judicial, mas com o mesmo tratamento de despesa istrativa. Caso essas opções não sejam viáveis, a legislação permite, com anuência do juízo, a concessão de garantias adicionais, como prioridade superior às despesas istrativas, garantias sobre bens livres ou garantias subordinadas sobre bens já onerados.

Se ainda assim o financiamento for insuficiente, o juiz pode autorizar a criação de garantias primárias superiores ou equivalentes às já existentes, desde que os interesses do credor original estejam adequadamente protegidos. Na prática, sem garantias substanciais, é improvável que o devedor consiga financiamento, exceto se possuir ativos não onerados.

Importante destacar que, no direito falimentar estadunidense, o plano de recuperação judicial (PRJ) somente será homologado pelo Judiciário se demonstrar viabilidade concreta de cumprimento e afastar o risco de liquidação forçada.

O Brasil incorporou as premissas apontadas pelo direito norte-americano, sendo hoje considerado uma das mais importantes ferramentas para o sucesso do processo de recuperação de uma empresa, beneficiando não somente o devedor, mas todas as partes envolvidas com a manutenção da atividade empresarial, engendrando nítida função social.

Financiamento DIP antes da reforma legal

Antes da positivação do DIP Finance, o Brasil não havia em seus instrumentos normativos modalidades que pudessem garantir assertividade e segurança jurídica aos potenciais investidores, o que corroborou para o fato do Brasil figurar como um dos países com as menores taxas de recuperabilidade das companhias do mundo.

Corroborava a ausência de financiamento nas sociedades em recuperação judicial já que as regras impostas pelo Banco Central e Conselho Monetário Nacional a respeito do rating de crédito das empresas, o que está atrelado ao risco de inadimplemento somado à capacidade de pagamento da companhia frente às instituições nacionais e internacionais [1].

O rating era, portanto, fator complicador para realização do DIP Finance com instituições financeiras [2].

O financiamento DIP, antes da reforma acima mencionada, se valiam de regramentos esparsos para conferir vantagens aos investidores, contudo, os mesmos não eram suficientes para garantir o mínimo de segurança, considerando a exposição e risco a serem enfrentados, fato que prejudicava o soerguimento da companhia, e, consequentemente, colaborava para frustrar o princípio basilar previsto no artigo 47 da Lei nº 11.101/2005.

Tendo como leading case a Recuperação Judicial do Grupo OAS o magistrado Daniel Carnio entendeu que o pleito do financiamento DIP deveria ser tratado em audiência de gestão democrática a fim de que os credores resistentes à operação proposta pelas recuperandas (DIP Finance) pudessem ter a oportunidade de esclarecer todas as suas dúvidas diretamente com as próprias recuperandas e na presença do juízo, da a judicial e dos demais credores interessados.

No caso relatado o magistrado afastou a realização de uma Assembleia Geral de Credores sob o argumento de urgência na injeção de capital, mas, ainda assim, foi objeto de contestação por parte de terceiros interessados na realização do investimento.

No Brasil, a manifestação dos credores é de suma importância para mitigar os riscos de ferir o contraditório e ampla defesa do concurso de credores. Exatamente por este motivo a jurisprudência brasileira, antes da positivação do DIP, não era uniforme e gerava insegurança aos investidores e até mesmo aos devedores.

Além disso, ante a inexistência de normativa interna, o financiamento DIP sofria modulações quanto ao valor a ser aplicado, garantias concedidas, o que corroborava ainda mais para a insegurança jurídica.

O que se percebe é que nem a doutrina, nem a jurisprudência brasileira, consolidou o procedimento adequado, instrumentalizando a via apropriada para criar um ambiente transparente e seguro para debate da matéria atinente ao financiamento DIP.

Reforma introduzida pela Lei nº 14.112/2020

O cenário se modifica com a inserção na previsão legal para normatizar o instituto, fazendo, inclusive, que o Brasil avançasse no cenário de resolução de insolvência, garantindo maior segurança jurídicas às partes envolvidas.

A regramento do instituto tem feito a jurisprudência brasileira se alinhar e mitigar os riscos para terceiros envolvidos no procedimento, até mesmo os credores já que am a ter uma visão mais objetiva das consequências do financiamento para o processo de reestruturação e eventual falência.

Para o perfeito funcionamento do dispositivo legal é necessária uma visão a longo prazo dos benefícios individuais e coletivos da manutenção da atividade empresarial.

Preceitua o artigo 69-A, da Lei 11.101/05 que durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 da Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.

A doutrina afirma que embora a lei utilize a expressão “poderá”, não se trata mera faculdade do juiz autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, mas sim “poder-dever”, uma vez atendidos os requisitos legais, senão vejamos: “(…) A questão não se encontra no caráter discricionário do julgador. É poder-dever uma vez atendidos os requisitos legais não devendo o decisor se imiscuir no conteúdo, a não ser sindicando questões de ordem pública e limites legais de contratação”.

A norma legal, portanto, prescreve três requisitos legais para a autorização do DIP: (i) autorização judicial após a manifestação do Comitê de Credores, se existir, ou do Judicial; (ii) que a finalidade do DIP seja financiar a própria atividade da recuperanda e; (iii) que eventual garantia oferecida seja de bem do ativo não circulante.

A legislação brasileira, em cotejo com a atuação dos magistrados, busca garantir maior efetividade ao instituto se estiver demonstrado que os recursos serão essenciais para manutenção da atividade empresária.

Em qualquer situação, a fim de atender ao princípio da transparência (full and fair disclosure), é relevante que sejam prestadas informações claras e precisas à comunidade de credores e aos demais interessados acerca da utilidade da operação de financiamento em questão, dada a natural repercussão no patrimônio do devedor, bem como em função dos benefícios especiais outorgados ao financiador.

É importante verificar que inexiste na lei recuperacional brasileira qualquer dispositivo que exija que o devedor consulte todos os seus credores sobre as condições de um possível financiamento à empresa recuperanda, tampouco que imponha a obrigação de negociar tal financiamento no mercado com todos os seus credores, tendo havido, contudo, transparência na oportunização aos credores interessados.

Parece claro que tal exigência legal apenas dificultaria as tratativas e impediria a celeridade necessária para obtenção de novos créditos.

Não se desconhece as adversidades que uma empresa em crise enfrenta para levar a cabo e concluir um negócio jurídico de tal monta, diante da condição socioeconômica que lhe é inerente.

Conclusão

O financiamento DIP, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 14.112/2020, representa um avanço significativo no tratamento da crise empresarial, permitindo o aporte de capital essencial para a continuidade das atividades da empresa em recuperação. Inspirado no modelo norte-americano, o instituto foi adaptado à realidade nacional com salvaguardas legais que visam equilibrar a autonomia do devedor, os interesses dos credores e a função social da empresa.

A análise demonstra que o DIP é mais do que um mecanismo de financiamento: trata-se de um instrumento estruturante da recuperação judicial, cuja concessão deve ser avaliada pelo magistrado com base em critérios objetivos e transparência processual. A ausência de um procedimento rigidamente estabelecido exige atuação judicial técnica e comprometida, pautada na proteção do contraditório e da boa-fé. Em síntese, o fortalecimento do DIP é medida essencial para assegurar a efetividade do processo de soerguimento empresarial no Brasil.

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[1] Resolução CMN Nº 4.966, de 25 de novembro de 2021 – Dispõe sobre os conceitos e os critérios contábeis aplicáveis a instrumentos financeiros, bem como para a designação e o reconhecimento das relações de proteção (contabilidade de hedge) pelas instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil.

[2] “A automática deterioração do rating inviabiliza a participação desses agentes econômicos na contratação do chamado DIP Financing, que é o financiamento do devedor em recuperação judicial, malgrado o intuito do legislador seja o de estimular essa modalidade de operação, a exemplo do que se vê das alterações promovidas na Lei nº 11.101/05 (LRE), pelo advento da Lei nº 14.112/20 (cf. art. 69-A e ss. da LRE). Afinal, durante o período de suspensão para a negociação do plano de recuperação judicial, que pode ocorrer por 180 dias prorrogáveis por igual período, cuja mediana apurada pela ABJ/NEPI-PUCSP é de 5062 dias, o devedor não poderá satisfazer nenhuma das suas obrigações sujeitas ao plano de recuperação judicial, o que levaria ao pior estágio da classificação de crédito.” Classificação do risco das operações de crédito: a resolução 2.682/1999 CMN alterada pela resolução 4.966/2021 CMN. Sacramone. Marcelo Barbosa et al. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v.8, n.8, p. 60031-60047, aug., 2022  Disponível em: file:///C:/s//s/334+BJD%20(1).pdf. o em 17.05.2025

Autores

  • é advogada colaboradora da Enforce/BTG, especialista em recuperação judicial e falências, pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pela Insol International — Foundation Certificate in International Insolvency Law e graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

  • é desembargadora do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), doutora em Direitos, Instituições e Negócios pela UFF (Universidade Federal Fluminense), mestra pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e graduada pela UFRJ.

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