Direito Eleitoral

Por uma nova teoria da (in)elegibilidade

26 de maio de 2025, 8h00

Inicio este texto com uma citação do jurista argentino, Ricardo Guibourg: “Uma boa teoria deve servir para interpretar melhor a realidade e orientar a prática de forma mais eficaz rumo aos objetivos que esta estabeleceu” [1].

A teoria da elegibilidade no Direito brasileiro trata deste fenômeno jurídico com base na seguinte ideia: para ser candidato, o cidadão deve preencher as condições de elegibilidade (requisitos positivos) e não incorrer em causas de inelegibilidade (requisitos negativos).

Essa dicotomia estruturou a doutrina e jurisprudência nas últimas cinco décadas. De resto, tais expressões também estão consagradas nos textos de direito positivo, tanto na Constituição (cf. artigo 14, §§3º e 9º) quanto na Lei nº 9.504/97 (cf. artigo 11, §10).

O artigo “Pressupostos de elegibilidade e inelegibilidades”, de José Carlos Moreira Alves, publicado em 1976 na coletânea Estudos de Direito Público em Homenagem a Aliomar Baleeiro (Editora UNB), é considerado o marco teórico dessa distinção.

Naquela época, vigorava o controverso artigo 67, §3º, da Lei 5.682/1971 (antiga Lei Orgânica dos Partidos Políticos), que impunha ao eleitor desligado de um partido e filiado a outro um prazo de dois anos de carência para se candidatar. Em 1972, Pinto Ferreira publicara artigo defendendo a inconstitucionalidade da norma, por entender que ela instituía inelegibilidade por meio de lei ordinária, contrariando a exigência constitucional de lei complementar (artigo 151 da EC nº 1/1969). Em resposta, Moreira Alves escreveu o referido ensaio propugnando a tese oposta, no sentido de que o artigo 67, §3º, da Lei 5.682/1971 não versava sobre caso de inelegibilidade, mas, sendo requisito positivo, o preenchimento desse prazo de carência seria pressuposto de elegibilidade, que está fora do âmbito de incidência da lei complementar [2].

A rigor, a separação entre condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade foi forjada para justificar a validade de uma norma restritiva ao exercício da capacidade eleitoral iva.

Os professores André Luiz Batista Neves e João Glicério de Oliveira realizaram relevante investigação histórica acerca do tema, concluindo que esta díade surgiu mais por um embate pontual do que por uma reflexão teórica profunda [3]. Por isso, a despeito da sua consagração – até hoje amplamente aceita pelo eleitoralismo – estamos com o professor dr. Jaime Barreiros Neto:

“Afinal de contas, para que servem as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade senão para determinar quem pode e quem não pode se candidatar? Não faz sentido, no plano jurídico, a existência de dois institutos para determinar uma mesma consequência jurídica, com tratamento jurídico diferenciado” [4].

Tal circunstância justifica, por si só, a proposta que dá título a este texto: Por uma nova teoria da (in)elegibilidade [5].

Longe de ser um problema meramente teórico, ele interfere diretamente na prática eleitoral, principalmente porque, ao longo do tempo, a doutrina e a jurisprudência consagraram uma hermenêutica enviesada do termo “inelegibilidade”, como se ele só tivesse aplicabilidade quando da incidência de uma causa de inelegibilidade e nunca diante da ausência de uma condição de elegibilidade [6].

Sem a pretensão de esgotar esta complexa temática, os exemplos práticos a seguir ajudarão a desvendar o nonsense jurídico.

1) Recursos eleitorais

O artigo 121, §4º, III, da CF/88 dispõe que das decisões dos TREs somente caberá recurso (ordinário) quando versarem sobre inelegibilidade ou expedição de diplomas nas eleições federais ou estaduais.

O TSE interpreta o termo “inelegibilidade” em um sentido , por meio do qual o recurso ordinário somente é cabível nos casos em que o registro do candidato for indeferido por incidência de uma “causa de inelegibilidade” (requisito negativo). Na hipótese de indeferimento por ausência de condição de elegibilidade (requisito positivo), restaria ao pleiteante apenas a via do recurso especial eleitoral (cf. artigo 63 da Resolução TSE nº 23.609/2019).

Na prática, um candidato a deputado federal que tenha o registro indeferido no TRE por controvérsia relativa à sua filiação partidária (condição de elegibilidade) enfrentará maiores dificuldades para recorrer à instância superior do que outro candidato ao mesmo cargo cujo indeferimento decorra de uma inelegibilidade decorrente da condenação pela prática de crime contra a istração pública (artigo 1º, I, “e”, 1, da LC nº 64/90). Isto porque o regime jurídico do Respe é muito mais rigoroso, notadamente em face da exigência de prequestionamento (Súmula nº 72/TSE), da impossibilidade de juntada de novos documentos em sede recursal e sobretudo do impedimento de reexame do conjunto fático-probatório (Súmula nº 24/TSE).

Resultado: dois candidatos na mesma situação (registro indeferido) têm tratamentos jurídicos diferentes em razão do motivo do indeferimento do seu requerimento de registro de candidatura (RRC).

2) Ação rescisória eleitoral

Nos termos do artigo 22, I, “j”, do Código Eleitoral, compete ao TSE processar e julgar originariamente a ação rescisória nos casos de inelegibilidade. Neste caso, o modelo hermenêutico enviesado está consagrado no enunciado da Súmula de nº 33 da jurisprudência dominante do TSE: “Somente é cabível ação rescisória de decisões do Tribunal Superior Eleitoral que versem sobre a incidência de causa de inelegibilidade”.

Ou seja: a decisão judicial transitada em julgado não poderá ser objeto de ação rescisória se a controvérsia disser respeito à ausência de condição de elegibilidade.

3) Recurso contra expedição de diploma

A redação original do artigo 262 do Código Eleitoral assim prescrevia: “O recurso contra expedição de diploma caberá somente nos seguintes casos: (…) I – inelegibilidade ou incompatibilidade de candidato”.

O TSE fixou jurisprudência no sentido de que “[…] 1. Não se ite o ajuizamento de recurso contra expedição de diploma com fundamento em ausência de condição de elegibilidade. […]” (Ac. de 17/10/2013 no AgR-REspe nº 54667, relator: ministro João Otávio de Noronha; no mesmo sentido o Ac. de 4/8/2011 no AgR-REspe nº 950093606, relator: ministro Marcelo Ribeiro).

A limitação do RCED às causas de inelegibilidade sempre gerou controvérsias, levando o legislador a modificar a redação do artigo 262 do Código Eleitoral (alterado pela Lei nº 12.891/2013) para incluir expressamente a ausência de condição de elegibilidade como fundamento apto ao manejo do referido instrumento processual.

4) Circunstâncias supervenientes ao registro que afastam a inelegibilidade

Por fim, a norma do artigo 11, §10, da Lei 9.504/97 permite considerar, para efeito de deferimento do registro, as circunstâncias fáticas ou jurídicas supervenientes que afastem a inelegibilidade.

Durante muito tempo a jurisprudência do TSE vedou a incidência do dispositivo em casos de afastamento posterior de ausência de condição de elegibilidade (Ac. de 30.9.2010 no AgR-AgR-RO nº 155.249, relator: ministro Arnaldo Versiani).

Ou seja: se a plenitude dos direitos políticos (condição de elegibilidade) de um candidato fosse restabelecida após o pedido de registro, tal fato não afastaria o impedimento à candidatura. No entanto, se, neste ínterim, cessasse uma causa de inelegibilidade, a alteração superveniente seria considerada suficiente para beneficiar o candidato.

Em razão dessa incongruência lógica, a própria Corte Superior reviu seu entendimento, editando, em 2016, a Súmula nº 43 com o seguinte enunciado: “As alterações fáticas ou jurídicas supervenientes ao registro que beneficiem o candidato, nos termos da parte final do art. 11, § 10, da Lei nº 9.504/1997, também devem ser itidas para as condições de elegibilidade”.

De toda maneira, para não incorrer na hermenêutica enviesada inerente à teoria clássica da elegibilidade, quase sempre é necessário um hercúleo esforço interpretativo.

Conclusão

Enquanto tramita no Congresso Nacional o projeto de “Novo Código Eleitoral” (PLP nº 112/2021), por meio do qual o legislador propõe uma melhor sistematização e consolidação da nossa legislação eleitoral, é oportuno que a doutrina nacional também reflita sobre a oportunidade de desenvolver uma nova teoria da (in)elegibilidade no Direito Eleitoral brasileiro.

Como toda boa teoria, ela deve servir para aprimorar a interpretação do fenômeno da (in)elegibilidade e orientar de forma mais eficaz a praxis eleitoral, especialmente em direção a um objetivo basilar da nossa democracia: A afirmação da elegibilidade como verdadeiro direito político fundamental, livre das teorias reducionistas que tendem a restringir o seu alcance.

 


Notas:

[1] GUIBOURG, 1987 apud CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010b. p. 27, tradução nossa.

[2] ALVES, José Carlos Moreira. Pressupostos de elegibilidade e inelegibilidades. In: REZEK, José Francisco et al. (Coord.). Estudos de direito público em homenagem a Aliomar Baleeiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1976. p. 231.

[3] NEVES, André Luiz Batista; OLIVEIRA, João Glicério de. Breve história da chamada teoria “clássica” das inelegibilidades: Por que a doutrina brasileira as separa das condições de elegibilidade?. Revista Juridica, [S.l.], v. 1, n. 73, p. 692-722, jan./mar. de 2023. Disponível em: <https://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/6334/371374329>.

[4] BARREIROS NETO, Jaime. Direito eleitoral. 14. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024. p. 217.

[5] Em publicações anteriores apresentamos uma hipótese teórica diversa, alicerçada na metodologia do constructivismo lógico-semântico e com potencial para melhor interpretar o fenômeno jurídico da elegibilidade. A propósito, vale conferir os seguintes papers: 1º) A regra matriz de elegibilidade e as “condições de registrabilidade”: uma análise lógico-semântica do procedimento de registro de candidatura (link: http://bibliotecadigital.tse.jus.br/handle/bdtse/8479); e 2º) Entre a teoria clássica e a teoria do fato jurídico: apontamentos para uma nova dogmática em matéria de (in)elegibilidade (link: http://bibliotecadigital.tse.jus.br/handle/bdtse/10443).

[6] Cf. SALUM, Vinicius D. L. Um breve ensaio acerca do manicômio jurídico eleitoral: a terapêutica de Alfredo Augusto Becker aplicada ao Direito Eleitoral. Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político, São Paulo, SP, v. 8, n. 2, p. 206-228. jun./dez. 2024.

Autores

  • é advogado e professor, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), especialista em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), especialista em Procuradoria Jurídica pelas Faculdades Integradas Ipitanga (Faciip) em parceria com a Fundação César Montes (Fundacem), especialista em Docência Universitária pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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