A punição d’Os 'demônios' do 8 de Janeiro
1 de março de 2025, 8h00
O cientista político Mark Lilla escreve que: os reacionários não são conservadores. É a primeira coisa que se deve entender a seu respeito. À sua maneira, são tão radicais quanto os revolucionários e não menos firmemente presos nas garras da imaginação histórica [1].
Para o autor a mente reacionária é uma mente naufragada. Onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre fluiu, o reacionário enxerga os destroços do paraíso ando à deriva. Publicado em 1872, Os Demônios [2] (Бесы, no original russo) é um dos romances mais intensos e politicamente carregados de Fiódor Dostoiévski. A obra retrata a infiltração de ideologias revolucionárias niilistas na Rússia do século 19, expondo suas consequências destrutivas por meio da história de um grupo de conspiradores liderados pelo carismático e cruel Piotr Verkhovênski. Inspirado por eventos reais, como o assassinato do estudante Ivanov por membros do grupo de Serguei Netchaiev, o romance é tanto uma crítica feroz ao radicalismo político quanto uma exploração da degradação moral.
O título original, Бесы, tem como tradução mais adequada Os Demônios, mas também foi traduzido como Os Possessos. Essa ambiguidade é crucial para entender a obra: por um lado, os personagens são como demônios que corroem a ordem social e moral da Rússia; por outro, eles próprios são “possuídos” por ideias estúpidas e destrutivas, tornando-se instrumentos de forças que não compreendem totalmente. Dostoiévski usa essa metáfora para sugerir que o extremismo não apenas destrói a sociedade, mas também corrompem a dignidade de quem o carrega.
Com uma narrativa intensa e personagens memoráveis, Os Demônios continua sendo um dos romances mais profundos sobre política, fanatismo e o vazio existencial causado pela crença em ideias destrutivas e pode nos ensinar uma ou duas coisas sobre os “possessos” do Brasil.
Os demônios do Brasil
A Procuradoria-Geral da República concluiu, em denúncia enviada há poucos dias ao Supremo Tribunal Federal, que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) liderou uma tentativa de golpe para se manter no poder em 2022.
Especialistas são unânimes no sentido de que denúncia apresentada por Paulo Gonet é sólida e bem embasada, trazendo um relato detalhado dos eventos em 272 páginas. Trata-se de uma peça didática que narra com começo, meio e fim, com enredo, mocinhos e vilões, uma trama que teria sido iniciada em 2021 e culminado na invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Com essa peça Gonet leva definitivamente as discussões sobre golpe do estado para o judiciário tirando-a do campo do opinionismo político.
Segundo a acusação, o primeiro ato ocorreu em 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro declarou publicamente que não mais se submeteria às decisões da Suprema Corte. Na ocasião, chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e afirmou que não cumpriria suas determinações.
Com a proximidade das eleições de 2022, a organização criminosa teria se voltado à deslegitimação do processo eleitoral e da segurança das urnas eletrônicas. O objetivo, segundo a PGR, foi criar um ambiente propício para um futuro golpe.
Após a derrota nas urnas, Bolsonaro teria pressionado o comando das Forças Armadas para apoiar a trama golpista, incentivado acampamentos em frente a quartéis e acionado grupos de elite “kids pretos”, especializados em operações especiais. Além disso, segundo a denúncia, o ex-presidente teria sido informado e concordado com o plano “Punhal Verde e Amarelo”, que previa o assassinato do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) e do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral à época. Além de Bolsonaro, outras 33 pessoas foram denunciadas, entre elas Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil, da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro em 2022; Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin); Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; e Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

Caso a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal receba a denúncia (e deve receber por unanimidade), Bolsonaro, militares e integrantes do governo anterior responderão por cinco crimes:1) Organização criminosa armada (três a 17 anos de prisão);2) Tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito (quatro a oito anos); 3) Golpe de Estado (quatro a 12 anos); 4) Dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União (seis meses a três anos); e 5) Deterioração de patrimônio tombado (um a três anos).
Apesar da robustez da acusação, é fundamental lembrar, como ressaltaram juristas, entre eles Rubens Casara, que a denúncia é a peça de acusação e não a sentença final do processo — algo que alguns jornais, inclusive veículos respeitáveis, parecem não diferenciar de uma sentença, por isso é importante destacar: a peça de acusação deve conter todas as provas e indícios, a PGR apresenta os fatos e sua interpretação jurídica, mas cabe ao STF analisar as provas e garantir o devido processo legal.
Diante da gravidade da denúncia, Bolsonaro tem tentado construir uma narrativa de vitimização. Em uma longa entrevista concedida a um repórter conhecido por promover brigas entre subcelebridades, o ex-presidente lançou a pergunta retórica: “Quais crimes eu cometi?” Nos círculos bolsonaristas, a estratégia tem sido insistir na tese de que “tentativa não é crime” e que “atos preparatórios não são crimes”. Essa argumentação pode funcionar no campo político, onde frases de efeito substituem a análise jurídica rigorosa, mas no âmbito do Direito ela não a de um terraplanismo jurídico.
Essa farsa já foi desmontada por diversos juristas, incluindo o professor Lenio Streck, que, em excelente matéria publicada na ConJur, desmistificou a narrativa:
“Tentar derrubar a democracia já é a consumação do ato criminoso. A tentativa quer dizer: fazer qualquer ato que conduza ao objetivo.”
Eis o ponto essencial: os crimes imputados a Bolsonaro e seus aliados não exigem que o golpe tenha sido bem-sucedido. O crime já está configurado no momento em que há a tentativa. Não há margem para dúvidas, pois o próprio texto da lei é cristalino ao começar com o verbo TENTAR:
“Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Art. 359-L. TENTAR, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.Golpe de Estado
Art. 359-M. TENTAR depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.”
O crime não exige que a derrubada do governo tenha ocorrido, aliás isso seria evidentemente autocontraditório, pois daí não haveria quem punir. Para ter crime basta a tentativa. A própria redação legal já encerra a discussão.
Dostoiévski começa Os demônios com a seguinte agem bíblica:
Ora, andava ali, pastando no monte, uma grande manada de porcos; rogaram-lhe que lhes permitisse entrar naqueles porcos. E Jesus o permitiu.
Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou.
Os porqueiros, vendo o que acontecera, fugiram e foram anunciá-lo na cidade e pelos campos.
Então saiu o povo para ver o que se ara, e foram ter com Jesus. De fato, acharam o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus; e ficaram dominados pelo terror.
E algumas pessoas que tinham presenciado os fatos contaram-lhes também como fora salvo o endemoninhado. Lucas, 8, 32-6*
Não podemos permitir que “Demônios” que possuíram e tentaram jogar a nossa democracia do penhasco sigam com seus projetos políticos, o que está em jogo nesse julgamento é a própria democracia. TENTAR dar um golpe de Estado já é crime. A realidade é muito diferente do que o que é criado por mentes naufragadas. Os demônios que tentaram derrubar nossa democracia com suas ideias vazias foram apenas o prefácio de um terror ainda maior, eles não podem ficar soltos por aí.
[1] Lilla, Mark. A mente naufragada. Rio de Janeiro: Record, 2018.
[2] Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.
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