Diante da jurisprudência defensiva: a teoria do direito importa?
22 de março de 2025, 8h00
O constitucionalismo contemporâneo redimensiona a práxis político-jurídica [1], Nesse contexto, a Constituição de 1988 exemplifica esse novo paradigma ao instituir um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, caracterizando-se como um pacto constitucional compromissário e dirigente. O Judiciário assume um papel central na concretização desse modelo, e a judicialização surge como fenômeno contingencial para efetivar tais direitos. No entanto, isso também levanta desafios sobre a litigiosidade de massa e a capacidade institucional do Judiciário. Tentativas de modernização buscam um Judiciário funcional e ível, mas podem resultar em soluções simplistas, impositivas e pouco dialogadas – o que Streck denomina modernizações autoritárias [2] –, como a jurisprudência defensiva imposta pelas cúpulas do Judiciário.
A colonização do Judiciário por uma agenda político-institucional quantitativa e o nascimento predatório da jurisprudência defensiva
Ainda no ano de 2007, Roberto Fragale Filho [3] apresentou um interessante estudo no qual analisa os riscos do crescente desenvolvimento de uma agenda quantitativa no âmbito do Poder Judiciário.
O autor destaca como os números têm contaminado o processo avaliativo do Judiciário e como eles são instrumentalizados para fornecer uma diretriz balizadora da discussão acerca do impacto e do alcance da função jurisdicional, a partir de uma perspectiva colonizadora da Economia. Dessa forma, essa transformação acaba por redefinir a atividade jurisdicional sob um viés economicista.
Diante da explosão em massa da litigiosidade, que colocou à prova a capacidade institucional do Judiciário de corresponder à contingência da judicialização, este ou a adotar modernizações nem sempre adequadas à garantia do o à justiça. Assim, paradoxalmente, enveredou-se pelo caminho de buscar a efetividade da jurisdição por meio da criação de obstáculos ao o às cortes superiores.
Evidentemente, não se pretende aqui afirmar que o Superior Tribunal de Justiça deva se ocupar de todo e qualquer recurso ou matéria, justamente em razão do caráter especial do recurso que lhe dá o. Caso contrário, a corte se tornaria uma mera instância ordinária, resultando em uma redundância institucional.
Nosso foco é a proliferação de obstáculos criterialistas [4] ao conhecimento dos recursos, sob uma perspectiva meramente utilitarista e quantitativa, que, ao fim e ao cabo, compromete o o à Justiça e gera uma verdadeira disfuncionalidade institucional na Corte da Cidadania. É nesse ponto que se situa minha crítica à chamada “jurisprudência defensiva”, que, nesses moldes, se transforma em um mero formalismo exacerbado, assumindo, em última análise, uma perversa faceta predatória do Direito.
O ministro do STJ, Humberto Gomes de Barros, em 2008, durante seu discurso de posse na presidência da corte, expôs de forma contundente os dilemas enfrentados pelo Judiciário e por aquele tribunal:
“Sufocado pelo inável peso de tantos encargos, o Tribunal mergulhou em paradoxo semelhante àquele que envolveu o sofredor Juca Mulato. O trágico personagem de Menotti Del Picchia descobriu que ‘Esta vida é um punhal com dois gumes fatais: Não amar é sofrer; amar é sofrer mais’! À semelhança do patético Juca, o STJ percebeu que, na situação em que se encontrava, ‘Não julgar é justiça denegar; Julgar às pressas é arriscar E com a injustiça flertar’” [5].

Quase duas décadas depois, a tendência apontada por Fragale Filho se confirmou. Nessa mesma linha, Óliver Vedana [6] denuncia, com precisão, essa “vontade de eficiência” e a simplificação excessiva da equação menos processos = maior eficiência. Ele evidencia como essa visão desconsidera a distinção essencial entre eficiência quantitativa e qualitativa, além do risco de que mecanismos supostamente indispensáveis à viabilidade da prestação jurisdicional assumam um caráter meramente utilitarista. Isso ocorre especialmente quando a eficiência qualitativa é relegada a um papel secundário, em vez de ser tratada como um princípio igualmente fundamental e indissociável da dimensão quantitativa.
Diante da jurisprudência defensiva: eis a porta da Corte da Cidadania – ela é sua! Desde que…
“Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. ‘É possível’, diz o porteiro, ‘mas agora não’. Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: ‘se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso ar a visão do terceiro’. O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser ível a todos a qualquer hora, pensa ele.”
O excerto acima faz parte parábola Diante da Lei de Franz Kafka. Essa parábola, inserida no romance O Processo, do mesmo autor, representa metaforicamente a dificuldade de o à justiça. Nela, um camponês busca entrar pela porta da Lei, mas é impedido por um porteiro que constantemente nega sua entrada com diferentes justificativas. Essa narrativa reflete o drama vivido por Josef K., protagonista do romance, que enfrenta um sistema judicial hermético e arbitrário, no qual o direito à defesa é sistematicamente frustrado. O porteiro simboliza as barreiras institucionais que, sob pretextos formais e burocráticos, inviabilizam a efetividade da justiça.
Além da crítica ao funcionamento do sistema jurídico, a parábola revela a justiça como um ideal inalcançável. O camponês acredita que sua persistência será recompensada, mas, ao final da vida, descobre que a porta fora feita exclusivamente para ele e, ainda assim, permaneceu fechada. Da mesma forma, K. percebe tarde demais que sua condenação já estava determinada, sem jamais ter tido uma chance real de defesa. Kafka, assim, transmite a angústia do indivíduo diante de um sistema que promete justiça, mas opera de forma excludente e opressiva, tornando impossível não apenas a obtenção de uma decisão justa, mas até mesmo o simples o ao processo [7].
Se antes a incerteza e a angústia estavam na saída do processo, no resultado, agora já se manifestam desde a entrada, na própria possibilidade de sequer ingressar efetivamente.
Muitas vezes, nos conformamos com os dissabores da rotina na prática jurídica. Uma servidão voluntária. Como já denunciava Étienne de La Boétie, “os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos além do que encontram. Chegam, finalmente, a persuadir-se de que a condição de seu nascimento é natural” [8].
Não obstante, diante da jurisprudência defensiva, não podemos esmorecer. É preciso persistir e adentrar a porta da Lei. Contudo, esse caminho é um verdadeiro campo minado, repleto de guardas e entraves que, em determinados casos, não am de meras filigranas jurídicas. Sim, aqui o termo filigrana é apropriado, pois não nos referimos para atacar garantias como certos grupos reacionários fazem, mas a formalidades artificiais utilizadas para suprimir direitos e restringir o o à justiça.
Mas, para isso, é preciso estar munido do que compete à doutrina: um constrangimento epistemológico pautado em um arcabouço teórico capaz de desvelar o uso inadequado da jurisprudência defensiva e nos capacitar para o seu enfrentamento.
A teoria do direito importa no enfrentamento a um quadro estrutural de hipocrisia e disfuncionalidade institucional – ou por qual razão não podemos nos curvar ao primeiro, segundo ou terceiro guarda!
Nesse sentido, cito dois exemplos que evidenciam, de forma clara, o desvirtuamento de entendimentos jurisprudenciais em nossa lida diária no âmbito do recurso especial: a Súmula 182 e a Súmula 83, ambas do STJ.
A Súmula 182 trata do ônus da impugnação específica, estabelecendo que não é cabível o agravo que não ataca de maneira precisa os fundamentos da decisão agravada. Já a Súmula 83 dispõe que não se conhece do recurso especial quando a orientação do tribunal já se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.
Não raras vezes, o recurso especial tem seu juízo de issibilidade negado pela presidência do Tribunal de Justiça com fundamento na Súmula 83. Isso ocorre porque o acórdão recorrido simplesmente reúne um conjunto de ementas do STJ supostamente aplicáveis ao caso, sem que seja feita qualquer explicitação da relação dessas ementas com a controvérsia analisada. O mesmo procedimento é adotado pela presidência do TJ em sede de issibilidade, como se a ementa, por si só, constituísse fundamento suficiente e representasse o próprio precedente.
A partir desse momento, inicia-se o martírio do causídico na interposição do agravo e do agravo no agravo… e por aí vai… buscando superar o famigerado e malversado ônus da impugnação específica, que, com base no princípio da dialeticidade, a a ser exigido de forma rigorosa, ainda que não tenha sido previamente cumprido pelo próprio tribunal ao justificar a negativa de issibilidade do recurso. Aqui, pertinente a crítica de Dierle Nunes e Aurélio Viana [9]:
(1) O Código de Processo Civil de 2015 trouxe mecanismos para combater a jurisprudência defensiva, mas, paradoxalmente, observa-se uma aplicação cada vez mais rígida do ônus da dialeticidade como critério de issibilidade recursal. Esse princípio exige que o recorrente impugne especificamente os fundamentos da decisão agravada, sob pena de inissibilidade do recurso. No entanto, verifica-se uma tendência preocupante no STJ, que tem negado seguimento a agravos internos sob a justificativa de que suas razões apenas reproduzem os fundamentos do recurso especial, sem uma impugnação específica;
(2) Essa exigência, aplicada de forma mecânica, contrasta com a própria jurisprudência consolidada, segundo a qual não é necessário que o órgão julgador responda a todos os argumentos das partes, desde que os fundamentos utilizados sejam suficientes para a decisão. Assim, há uma inversão do que estabelecem os artigos 489, §1º, IV, e 1.021, §1º, do C/2015, o que demonstra o risco do ônus da dialeticidade ser transformado em um novo instrumento de jurisprudência defensiva, comprometendo o o à justiça e restringindo indevidamente o direito ao recurso.
Constrói-se, assim, um sistema hipócrita e pouquíssimo isonômico. Essa é uma verdade incômoda que precisa ser dita. Se não reconhecermos a função social da teoria do direito, estaremos fadados a permanecer como o camponês da parábola de Kafka: diante da lei, mas incapazes de á-la.
Condenados a aceitar um sistema de efetividade meramente quantitativa, que sacrifica a efetividade qualitativa e, sob o pretexto de solucionar os problemas do Judiciário, ceifa direitos e garantias fundamentais dos cidadãos [10]. Forçados a conviver com um Judiciário oligarquizado, burocratizado, reduzido a um mero filtro de ações judiciais, sem ability e cada vez mais distante da sociedade [11].
Como é possível enfrentar as Súmulas 83 e 182 sem compreender o conceito de precedente e como a teoria do stare decisis é distorcida em nosso país? Como contestar sua aplicação sem saber que uma mera ementa, reproduzida fora de contexto, não carrega, por si só, o elemento vinculante do precedente? Como refutar essa aplicação simplista e mecânica da Súmula 83 sem entender o que é o distinguishing e como demonstrá-lo? E como identificar a holding do precedente e sua verdadeira força normativa sem esse conhecimento essencial?
Essas são apenas algumas das questões que nos levam a recorrer à teoria do direito, cuja compreensão é essencial para enfrentarmos, de forma crítica e eficaz, os desafios diários da prática jurídica. Mais do que nunca, a teoria do direito importa como resistência à mediocrização autoritária da prática jurídica, que compromete o o à justiça.
Numa palavra final: não podemos cair na subserviência! Conclamo que sejamos revoltados — indignar-se é preciso! Protegidos pelo colete justeórico à prova dos snipers jurisdefensivos, empunhemos a Constituição e o Código de Processo Civil, especialmente o tão desprezado artigo 489, como nossas armas – até o último soldado, até a última trincheira! Pois esta porta pertence ao cidadão, e é nosso dever garantir que ele possa atravessá-la.
[1] Cf. o verbete “Constitucionalismo Contemporâneo”, onde isso é esmiuçado. In: STRECK, L. L. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020.
[2] Nesse sentido: (i) STRECK, Lenio (aqui) e (ii) STRECK, Lenio (aqui).
[3] FRAGALE FILHO, R. Poder Judiciário: Os riscos de uma agenda quantitativa. In: COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda; MORAIS, José Luis Bolzan de; STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Estudos Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
[4] O criterialismo, enraizado no positivismo, trata os conceitos jurídicos como tendo significados previamente estabelecidos e convencionais, sem necessidade de interpretação. Diferentemente, a visão interpretativista entende que a identificação do Direito envolve disputas por sua melhor leitura. Por isso, o criterialismo não se confunde com a criteriologia. Para compreender melhor essa diferença, veja o verbete “Criterialismo” do Glossário do livro: STRECK, L. L. Ensino jurídico e(m) crise: ensaio contra a simplificação do direito. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024.
[5] Retirado de: VAUGHN, G. F. A jurisprudência defensiva no STJ à luz dos princípios do o à justiça e da celeridade processual. In: Revista de Processo. 2016. p. 339-373.
[7] Sobre essa análise, consultar o excelente trabalho de Adriana Santos, que serviu de base para essa reflexão a partir de seu estudo sobre a parábola Diante da Lei In: SANTOS, A. O Ministério Público diante da lei. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 19, n. 55, 2020.
[8] LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2017. p. 36
[9] Dierle Nunes e Aurélio Viana (aqui).
[11] Idem, FRAGALE FILHO, 2007.
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