Licitação, show musical e Ecad
12 de junho de 2025, 11h23
Tema que pode tirar o sono de setores culturais e de lazer de alguns municípios é a questão do recolhimento ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) dos valores referentes aos direitos autorais.

A lei anterior de direitos autorais previa que eventos artísticos sem finalidade lucrativa não tinham o dever de recolhimento de direitos autorais. A lei atual, porém, prevê, expressamente, a necessidade de recolhimento, ainda que se trate de evento sem objetivo de lucro.
A lei atual também prevê a responsabilidade solidária dos promotores do evento, não se enquadrando o show musical na responsabilidade decorrente dos encargos trabalhistas. Ou seja, o Tema 1.118 do STF não se aplica às hipóteses de shows musicais.
O presente texto pretende sugerir cautelas aos es municipais.
O fato é que nas acanhadas urbes argumentos do gênero “sempre foi assim” são usuais inobstante desprovidos de substância jurídica. Estupros e tráfico de drogas também são costumes antigos, nem por isso lícitos.
O fato de já terem ocorridos shows anteriores sem as cautelas quanto aos direitos autorais não livra o município de uma condenação em obrigação de não fazer shows e/ou condenação ao pagamento de valores ao Ecad.
Legitimidade do Ecad
A tese da ilegitimidade do Ecad, inobstante usual em defesas de municípios, já foi sepultada pelo STF.
Assim, o recurso extraordinário do município de Atílio Vivácqua pacificou o tema na pena da ministra Cármen Lúcia:
“DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO ESCRITÓRIO CENTRAL DE ARRECADAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO – ECAD. JULGADO RECORRIDO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO” (RE 627297,Julgamento: 21/10/2010, Publicação: 3/11/2010, grifos nossos)
Regulamentação pelo próprio Ecad
A Corte Suprema já se manifestou pela validade jurídica da regulamentação dos valores a serem recolhidos pelo próprio Ecad:
“…em que pese a alegação do agravante no sentido da impossibilidade de regulamentação pelo ECAD das disposições da Lei 9.610/1998, é de se ressaltar que esta Corte já se manifestou pela validade do Regulamento de Arrecadação do ECAD. Nesse sentido, ARE 767.018, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 5/12/2013, AI 837.267, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 5/12/2012 e AI 829.836, minha relatoria, DJe 31/8/2012” (min. Luiz Fux, ARE 1.051.703, T&T Gastronomia LTDA – ME, Julgamento: 4/4/2018, Publicação: 17/4/2018, grifos nossos).
Evento sem finalidade lucrativa: irrelevância
Outro tema utilizado em defesas produzidas pelos órgãos públicos é a inexistência de intuito lucrativo do evento.
O STJ já decidiu:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. SÚMULA 284 DO STF. MULTA PREVISTA EM REGULAMENTO DO ECAD. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. EXECUÇÃO DE OBRAS MUSICAIS PROTEGIDAS EM EVENTOS PÚBLICOS. COBRANÇA DE DIREITO AUTORAIS. INTUITO DE LUCRO. PROVEITO ECONÔMICO. DESNECESSIDADE.”
RECURSO ESPECIAL Nº 2.098.063 – SP, RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI RECORRENTE : MUNICÍPIO DE CERQUILHO, julgamento: 07.11.2023, publicação: 13.11.2023″ (grifos do articulista).
Inaplicabilidade do Tema 1.118 do STF
O tema da aplicação do Tema 1.118 do STF ainda não se pacificou no tema ora debatido. Opinamos que não há farta menção do tema mas sua inaplicabilidade nos parece clara.
Prevê mencionado tema de repercussão geral:
“Não há responsabilidade subsidiária da istração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público. 2. Haverá comportamento negligente quando a istração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo. 3. Constitui responsabilidade da istração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato, nos termos do art. 5º-A, § 3º, da Lei nº 6.019/1974. 4. Nos contratos de terceirização, a istração Pública deverá: (i) exigir da contratada a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, na forma do art. 4º-B da Lei nº 6.019/1974; e (ii) adotar medidas para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, na forma do art. 121, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior” (grifos do articulista).
Neste ponto a revogação da Lei 8.666/1993 não alterará o panorama jurisprudencial, pois o teor da lei revogada e da lei atual é praticamente o mesmo.
Previa a Lei 8.666/1993:
“Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos estabelecidos neste artigo, não transfere à istração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis”.
Prevê a Lei 14.133/2.021:
“Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§1º A inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à istração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações, inclusive perante o registro de imóveis, ressalvada a hipótese prevista no § 2º deste artigo”.
O Tema 1.118 é específico sobre encargos trabalhistas e a jurisprudência majoritária se inclina pela responsabilidade decorrente de lei específica, a lei de direitos autorais. Assim, prevê a Lei 9.610/1998:
“Art. 110. Pela violação de direitos autorais nos espetáculos e audições públicas, realizados nos locais ou estabelecimentos a que alude o art. 68, seus proprietários, diretores, gerentes, empresários e arrendatários respondem solidariamente com os organizadores dos espetáculos” (grifos do articulista).
Por enquanto, para a maioria da jurisprudência (inobstante não haja menção expressa ao mencionado tema) NÃO seria hipótese de terceirização de serviços do município que autorizaria a aplicação do Tema 1.118 do STF. Assim, prevê a jurisprudência majoritária:
“Ementa: Apelação Cível. Ação de cobrança de direitos autorais cumulada com tutela inibitória. Sentença de parcial procedência. Recursos interpostos por ambas as partes. Preliminar de não conhecimento do recurso por ausência de impugnação específica afastada. Razões recursais que enfrentam adequadamente os fundamentos da sentença. Alegação de necessidade de inclusão das empresas contratadas no polo ivo rejeitada. Solidariedade que permite a cobrança de qualquer dos devedores. Execução de obras musicais em eventos públicos municipais. Legitimidade do ECAD para cobrança. Responsabilidade solidária do Município organizador dos eventos, conforme art. 110 da Lei 9.610/98. Irrelevância da gratuidade dos eventos ou da contratação de terceiros para sua execução. Ausência de comprovação de fiscalização pelo ente público. Desnecessidade de indicação específica das obras musicais executadas. Precedentes do STJ. Tutela inibitória corretamente indeferida por ausência dos requisitos do art. 300 do C. Necessidade de demonstração concreta de risco atual de violação, não bastando eventos pretéritos. Sucumbência recíproca afastada. Êxito do ECAD na maior parte dos pedidos. Recurso do Município desprovido. Recurso do ECAD parcialmente provido” (Apelação 1000442-14.2024.8.26.0646, Relator: Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho, Comarca de Urânia, município de Salete, 8ª Câmara de Direito Privado, julgamento:13/2/2025, publicação: 13/02/2025 – grifos do articulista).
Já a jurisprudência minoritária se posiciona pela inexistência de responsabilidade do município. Assim:
“Ementa: Ação de cobrança de direitos autorais e multa, cumulada com o pedido de expedição de mandato proibitório – Decisão de improcedência – Incidência do art. 71, caput e § 1º, da Lei 8.666/93 – Inexistência de responsabilidade solidária ou subsidiária da municipalidade por atos exclusivos de terceiros – Empresas contratadas para a promoção, idealização e a execução de eventos artístico em espaço público mediante licitação – Falha na prestação dos serviços típicos ou culpa in vigilando/eligendo do poder público não demonstradas nos autos – Imputação genérica – Inaplicabilidade dos arts. 68 e 110 da Lei 9.610/98 – Sucumbência disciplinada na forma da legislação de regência – Sentença mantida – Recursos não providos” (Apelação 1001314-77.2022.8.26.0491, relator: César Peixoto, 9ª Câmara de Direito Privado, comarca de Rancharia, data de julgamento e publicação: 29/07/2024 – grifos do articulista).
Os órgãos de assessoria jurídica, porém, não devem pautar suas orientações por posições minoritárias. A posição mais segura é seguir a jurisprudência majoritária.
Pelos motivos expostos, recomenda-se aos setores municipais de licitação: recolhimento dos valores devidos ao Ecad pelo município ou a previsão de pagamento, pelo próprio grupo artístico, antes da realização do show como exigência de cláusula contratual. Havendo a segunda opção, caso o grupo artístico contratado não comprove o recolhimento junto ao Ecad, recomenda-se o cancelamento do evento artístico e a imposição das penas previstas no artigo 156 da Lei 14.133/2021.
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